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Conheça Rob Ford, o prefeito que fuma crack

Atolado em escândalos, o prefeito de Toronto equilibra-se no cargo e se recusa a sair. Pela legislação canadense, ele ainda não pode sofrer impeachment, pois não cometeu nenhum crime. Rob Ford parece se esforçar para envergonhar a si mesmo e seus eleitores

Por Jean-Philip Struck
24 nov 2013, 09h38

A política municipal de Toronto, a maior cidade do Canadá e quarta maior da América do Norte, com 2,6 milhões de habitantes, parecia desinteressante até mesmo para os próprios canadenses – quanto mais para o resto do mundo. Mas eis que surge Rob Ford e os elementos perfeitos para um escândalo: um prefeito com a conduta totalmente descontrolada que admite ter fumado crack na companhia de traficantes. Além de ter envolvido o pacato Canadá, o que vem prendendo a atenção do noticiário é a persistência (ou cara de pau) com que o prefeito vem se agarrando ao cargo. Apesar do ultraje provocado por sua conduta, ele vem afirmando seguidamente há mais de três semanas que não pretende renunciar e, de maneira mais surreal ainda, diz que vai concorrer à reeleição. Recentemente, Ford expressou que tem vontade de se tornar – pasmem – primeiro-ministro do Canadá. E os habitantes de Toronto não sabem o que fazer com seu prefeito kamikaze de hábitos suicidas que continua dia após dia a produzindo notícias embaraçosas.

Com 44 anos, 1,78 metro e 160 quilos, a figura de Rob Ford chama atenção. Por causa do sobrepeso, ele anda cambaleando, com dificuldade, e ainda cultiva sua imagem com uma boca-suja digna de um estivador. Suas pérolas lhe valeram a criação de seções com o título “leia as frases mais inacreditáveis ditas por Ford nas últimas 24 horas” em alguns sites de notícias canadenses. “Eu bebo demais e fumei algum crack. O que eu posso dizer? Eu cometi um erro, sou humano”, disse ele em uma entrevista à rede CNN nesta semana.

Leia também: Toronto esvazia poderes de prefeito que fumou crack

Coletânea dos escândalos – O primeiro escândalo surgiu em maio, quando um site de variedades e um jornal revelaram a existência de um vídeo que mostrava Ford fumando crack ao lado de três traficantes num bairro decadente da cidade – um deles foi morto semanas depois em uma briga de gangues e os outros foram presos. O site, porém, não mostrou o vídeo, o que só fez crescer a curiosidade sobre sua real existência. No final de outubro, o escândalo finalmente ganhou contornos de caso de polícia. As forças policiais canadenses divulgaram ter apreendido uma cópia do vídeo e mandado para a prisão uma espécie de “faz tudo” de Ford, Alexander “Sandro” Lisi, suspeito de ameaçar traficantes em tentativas de recuperar a vexatória gravação. Uma semana depois, com um estilo franco que logo viria a se tornar piada, Ford acabou admitindo ter fumado a droga. Em sua defesa, disse que só havia fumado crack uma vez e que não se lembrava do episódio porque ele ocorreu em meio a uma “bebedeira”. Por fim, disse que não era um “viciado”.

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Reprodução de quadro do vídeo que mostra o prefeito Rob Ford na companhia de supostos traficantes
Reprodução de quadro do vídeo que mostra o prefeito Rob Ford na companhia de supostos traficantes (VEJA)

“Não estamos habituados a ver nosso prefeito ser alvo de manchetes pelo mundo”, disse o colunista canadense Andrew Coyne. “O que provoca fascínio é o nível extraordinário de desenvoltura do prefeito e a incapacidade da Câmara Municipal de tomar qualquer providência. É raro que alguém com um comportamento tão errático continue no cargo, se recuse a sair e não seja retirado de suas funções. A situação lembra uma tomada de reféns”, disse. Os reféns, é claro, são os cidadãos de Toronto.

Graças ao escândalo com o crack e sua conduta bizarra, Ford virou um personagem frequente nas piadas contadas por apresentadores de programas noturnos do vizinho Estados Unidos. “Ele é o presente de Deus para a comédia”, disse o apresentador Jay Leno na semana passada. Uma repórter do programa The Daily Show, de Jon Stewart, foi até as ruas de Toronto e leu diversas frases para alguns pedestres, perguntando em seguida se a autoria delas era de Ford ou do problemático ator Charlie Sheen. “Sério? Isso pareceu tão Rob Ford”, disse um deles quando ouviu uma frase cheia de palavrões dita por Sheen no passado. Outras piadas são apoiadas na semelhança física (e de comportamento) entre Ford e o comediante americano Chris Farley, que morreu de overdose em 1997.

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Casos – Prefeitos “porra loucas” não são algo inédito na América do Norte. O caso que mais vem gerando comparação com Rob Ford é o do ex-prefeito Marion Barry, de Washington, nos EUA. Em 1990, Barry foi preso pelo FBI (polícia federal americana) ao ser flagrado (e filmado) fumando crack em um quarto de hotel na capital americana. As imagens logo ganharam o mundo. O então prefeito perdeu a reeleição meses depois, e teve de cumprir seis meses de prisão. Mas, surpreendentemente, acabou sendo eleito para um novo mandato como prefeito em 1994 com 70% dos votos. Tal como Ford, Barry pintou uma imagem de si como ‘vítima do sistema’ e como um bom administrador, apesar dos problemas pessoais. O slogan da sua campanha após a prisão foi “Ele pode não ser perfeito, mas é perfeito para Washington”.

Leia também: Prefeito de Toronto agora admite que comprou drogas nos últimos anos

Mesmo Montreal, a segunda maior cidade do Canadá, foi abalada por uma série de escândalos no último ano, com a renúncia sucessiva de dois prefeitos acusados de corrupção – um deles chegou a ser algemado e preso enquanto ainda estava no cargo. Mas o que diferencia Ford desses políticos é a sua persistência – quase uma predileção – em arrumar confusão. Enquanto seus colegas de Montreal logo sumiram de vista e Barry evitou arrumar novas encrencas, Ford não consegue sair do noticiário – e tudo por sua culpa.

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Logo depois de admitir ter fumado crack, Ford voltou a ser notícia quando vazou um vídeo (veja abaixo) que o mostrava aparentemente embriagado, descontrolado e ofegante em seu gabinete, fazendo ameaças contra rivais. No dia 14 de novembro, enquanto negava a acusação de ter assediado uma funcionária com frases de teor sexual, Ford deixou os repórteres em choque ao dizer “sou feliz no casamento, tenho mais que o suficiente para comer em casa”. Também surgiram acusações de que ele teria feito uma festa com prostitutas em seu gabinete. Ele também admitiu ter dirigido bêbado para a prefeitura e que comprou e fumou maconha enquanto esteve no cargo. Haja fôlego. (Continue lendo o texto)

Mas, enquanto nos primeiros dias após a admissão a popularidade do prefeito se manteve estável – uma pesquisa chegou a mostrar que ela até subiu levemente -, a simpatia que alguns eleitores mostraram para a figura inacreditável do prefeito vem sendo substituída pelo cansaço. Uma pesquisa divulgada no dia 13 de novembro mostrou que 76% dos eleitores querem que ele renuncie. Ainda assim, o que surpreendeu no resultado foi que 24% ainda o apoiam.

Origem – Nascido numa família rica, Ford entrou para a política em 2000, quando se elegeu vereador de Toronto. Seu pai, Douglas Bruce Ford, era dono de uma empresa de etiquetas, que teve faturamento de 100 milhões de dólares (cerca de 230 milhões de reais) em 2010. Além de se dedicar aos negócios, Ford pai também se elegeu deputado estadual pelo estado de Ontário nos anos 90, concorrendo pelo Partido Conservador local. A política lhe valeu uma série de contatos com o governo central do país e com os líderes de seu partido. Como vereador, Rob Ford se aproveitou das conexões políticas do pai e passou a cultivar uma imagem como populista conservador, contra o excesso de gastos. Ele mirou nos habitantes dos subúrbios da cidade de Toronto, que passou por uma expansão nos anos 90, incorporando novas áreas e diluindo o eleitorado da região central, de tendências à esquerda. Essa mudança acabou provocando uma divisão ideológica entre os habitantes dos subúrbios e do centro.

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“A antiga cidade, com 750 000 habitantes, era dominada por uma política mais confortável, em que uma carga de impostos subsidiava uma série de serviços generosos. Já os subúrbios exemplificam uma mentalidade de governo que apenas deve fornecer serviços baratos para motoristas e proprietários”, afirma Zack Taylor, professor de estudos urbanos na Universidade de Toronto. Ford incorporou essa mentalidade. Seu lema era cortar taxas que irritavam seu eleitorado, como o equivalente canadense ao nosso IPTU, e promover cortes (mais simbólicos do que efetivos) nos gastos dos vereadores com viagens. O populismo também era a norma. Eleitores entrevistados por canais de TV americanos apontaram que Ford costumava atender telefonemas de eleitores e ia pessoalmente para suas casas para ajudar a resolver problemas como buracos na rua e árvores caídas.

O distrito para o qual Ford foi eleito vereador, Norte de Etobicoke, tinha uma população de cerca de 50 000 pessoas, a maioria imigrantes da Ásia. Nos anos seguintes, ele seria reeleito com margens esmagadoras de até 80% dos votos, apesar de seguidamente cometer gafes – certa vez disse que “os orientais trabalham como cachorros, por isso são bem-sucedidos e vão tomar conta de tudo”.

Prefeitura – Em 2010, ele decidiu se arriscar à Prefeitura. Levou seu discurso conservador de contenção de gastos e redução de impostos. Conseguiu 47% dos votos. Ao vencer, Ford não passou por nenhuma transformação até se tornar um arruaceiro. Seus problemas já eram conhecidos pelo eleitorado antes. Em 1999, ele já tinha sido preso em Miami, nos EUA, por dirigir sob o efeito de maconha. Em 2006 foi a vez de ele ser expulso de uma partida de hóquei no Canadá quando, visivelmente bêbado, insultou um casal que estava sentado atrás dele. Ele também admitiu ter problemas com o álcool, mas o público preferiu ignorar tudo isso.

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Ao assumir a prefeitura, Ford extinguiu algumas taxas como a de licenciamento de veículos, conseguiu mudar a natureza do transporte público para um “serviço essencial” – o que proibiu os funcionários de realizarem greves – e entregou parte da coleta de lixo na cidade para uma empresa privada. Esta última medida visava afastar a memória de toneladas de lixo que se acumularam nas ruas da cidade em 2009, quando os lixeiros realizaram uma paralisação. Ele também mandou acabar com as faixas para ciclistas que foram criadas nos anos anteriores em algumas vias, como parte de uma ofensiva para desestimular o uso de carros. “A guerra aos carros acabou”, disse ele em dezembro de 2010, ao anunciar o congelamento de linhas de bonde no centro, que eram impopulares entre os motoristas. Tudo isso teve um forte apoio nos subúrbios, muito dependentes dos carros. Ele ainda tirou da gaveta planos de expansão do metrô.

Já no corte de impostos ele não foi tão bem-sucedido. Sua administração não conseguiu extinguir uma impopular taxa de transferência de propriedade criada no governo anterior. Ainda assim, seu discurso contínuo de “preservar os dólares do contribuinte” continuou popular. E continua entre os 24% que ainda o apoiam, apesar do crack. “A mensagem que essas pessoas parecem estar mandando é: ‘preferimos ter um prefeito que ‘crackeiro’ que um prefeito que aumente os impostos’ e ‘não ligamos para o fato dele dirigir bêbado desde que privatize a coleta de lixo'”, afirmou o apresentador Rick Mercer em seu programa transmitido pela rede CBC. “A popularidade de Ford não tem nada a ver com o homem, ele é uma bizarrice que deveria estar no circo, mas as suas políticas têm bastante apelo”, completou. Ford também conta com amigos poderosos, como o primeiro-ministro canadense, Stephen Harper, seu aliado e líder do Partido Conservador, que tem evitado comentar o caso.

Saída – Com amigos poderosos ou não e mesmo contando com algum apoio, o que está mesmo segurando Ford é a confusa legislação da maior cidade do Canadá. Por incrível que pareça, os vereadores de Toronto ainda não têm poder para abrir um processo de impeachment, mesmo com a admissão de uso de drogas por parte de Ford. Para tanto, seria necessário que ele tivesse cometido algum crime. Em nenhum momento Ford foi flagrado comprando substâncias ilegais ou até mesmo em posse delas. Para tentar frear de alguma maneira o prefeito, a única coisa que a maioria dos vereadores conseguiu fazer até o momento foi pedir oficialmente sua renúncia e esvaziar seu poder. Esta última medida ocorreu no início da semana. Por 36 votos a cinco, os vereadores determinaram uma limitação do orçamento do gabinete do prefeito, reduziram sua equipe a menos da metade, e ainda delegaram a maioria de seus poderes ao vice, Norm Kelly.

Ao perceber que ia perder poder, Ford fez um discurso estranho comparando a atitude dos vereadores com a invasão do Kuait pelas tropas iraquianas de Saddam Hussein em 1990. “Vocês avabaram de invadir o Kuait”, disse ele para os legisladores municipais. Ele também xingou manifestantes e derrubou acidentalmente uma vereadora no chão. Entre os poucos que votaram a favor do prefeito estava seu irmão, o vereador Doug Ford. “Fizeram a mesma coisa com Jesus”, disse ele após a votação que enfraqueceu seu irmão. Nas últimas semanas, Doug, uma figura aparentemente mais equilibrada que Rob, mas que também compartilha do mesmo físico e gosto por insultar adversários, não desgrudou mais do irmão. Ele está sempre ao lado dele em entrevistas, e na Câmara. Os dois chegaram a gravar e estrelar juntos nesta semana juntos um talk show televisivo chamado Ford Nation, mas o programa acabou sendo cancelado após apenas uma exibição.

Se a pressão sobre Ford tem se revelado inócua, uma das poucas chances de retirar o prefeito do cargo seria a polícia avançar nas investigações que culminaram na apreensão do vídeo e na prisão do seu “faz tudo” em outubro. “Se Ford for preso, é provável que seja por ligação com algum tipo de operação para abafar o caso”, afirmou Michael Bolen, editor da versão canadense do Huffington Post. E parece ser essa a única opção. Nenhum caso de corrupção digno de escândalo surgiu até o momento para abalar sua administração e forçar ainda mais a sua saída ou a intervenção do Judiciário. Resta a opção da província de Ontário, onde fica Toronto, mudar a legislação para permitir um impeachment do prefeito. “O governo está hesitando em fazer isso. Ele é de tendência esquerdista e o prefeito é de direita, então isso poderia ser visto como uma manobra política e também abriria um precedente perigoso para futuros governos. E mesmo que o governo provincial decida agora, ainda vai levar meses para aprovar uma nova legislação”, afirma Bolen.

Enquanto isso Ford continua no cargo – e continua causando. Segundo a revista americana BusinessWeek, a comunidade empresarial de Toronto vem mantendo uma percepção otimista de que a conduta de Ford não vai prejudicar a cidade, “assim como os escândalos sexuais de Silvio Berlusconi não prejudicaram as vendas da Fiat”. A mentalidade é rechaçada pelo urbanista Richard Florida, ligado à universidade de Toronto. “Os custos provocados por um mau prefeito não aparecem no curto prazo, mas ao longo do tempo. Isso provoca o atraso de projetos e o cancelamento de outros”. Quando perguntado pela BusinessWeek o que significaria a permanência de Ford na prefeitura pelos próximos meses, Florida disse que isso significaria que “falta um parafuso em Toronto”.

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