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Retórica, a arte de vender o peixe com elegância

Muito se fala da importância – aliás enorme – de saber escrever. Afinal, uma vírgula no lugar errado pode ser fonte de problemas e desentendimentos na vida pessoal e profissional. Mas igualmente importante é falar bem. Um discurso claro e no tom certo é uma verdadeira arma de persuasão

Por Carol Nogueira
27 out 2012, 09h41
Ministro Joaquim Barbosa, relator, durante o julgamento do mensalão, em 23/10/2012
Ministro Joaquim Barbosa, relator, durante o julgamento do mensalão, em 23/10/2012 (VEJA)

Nos últimos meses, os brasileiros assistiram a verdadeiros espetáculos da política. Em Brasília, no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), homens de toga vêm se reunindo para decidir, em votos embasados por discursos quase sempre gigantescos, mas nunca rasos, o destino dos responsáveis pelo maior escândalo de corrupção da história recente, o mensalão. E em São Paulo, assim como em dezenas de outras grandes cidades do país, candidatos a prefeito se enfrentam em festivais de ataques e contra-ataques, réplicas e tréplicas pelo voto dos eleitores. Ainda que com intenções diferentes, ambos os eventos se valem de uma arte hoje quase esquecida nas escolas e escritórios, mas ainda essencial a quem pretende ganhar a vida no gogó: a retórica.

Muito se fala da importância – aliás enorme – de saber escrever. Afinal, uma vírgula no lugar errado pode ser fonte de problemas e desentendimentos na vida pessoal e profissional. Mas igualmente importante é falar bem. Um discurso claro e no tom certo é uma verdadeira arma de persuasão. É a chamada lábia, que garante o triunfo da paquera, a venda daquele projeto em uma reunião de trabalho ou a conquista de um eleitorado. Não à toa, estudiosos se debruçam sobre o assunto há mais de 2 mil anos. A primeira obra dedicada ao tema de que se tem notícia, Retórica, foi escrita pelo grego Aristóteles, quatro séculos antes de Cristo. Ali, ao longo de três volumes, o filósofo determinava as bases de um bom discurso. Foi aliás na Grécia Antiga que teve origem a palavra “retórica”. Que significa, literalmente, a arte de falar bem.

O estudo da arte de falar sobreviveu a Grécia e a Roma, e podia ser encontrado nas universidades da Idade Média, onde fazia parte do trivium, os três temas que eram ensinados nas instituições medievais – além da retórica, a gramática e a lógica. Na era moderna, porém, deixou de compor o currículo letivo, embora seja um diferencial imprescindível em um mundo cada vez mais competitivo.

“É pela maneira como constrói um discurso, de acordo com os elementos gramaticais e lógicos que utiliza, que uma pessoa pode conquistar a simpatia de quem a escuta. Uma figura de linguagem pode comover o ouvinte ou entediá-lo; pode convencê-lo ou confundi-lo. É para esses elementos que a retórica atenta”, diz Marcos Martinho, professor de Letras Clássicas da Universidade de São Paulo (USP).

https://youtube.com/watch?v=nOWWGdrWtqo

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Ad antiquitatem

Em tradução direta do latim, algo como “À antiguidade”. Bastante usado na política, é aquele recurso em que o orador justifica um erro com o passado. Em lugar de assumir a culpa por ter feito algo de um determinado jeito, ele argumenta que as coisas sempre foram feitas daquela maneira. É semelhante à argumentação tu quoque, em que o orador compartilha a responsabilidade por algo dizendo que o seu oponente cometeu o mesmo erro que ele.

Exemplo: Fernando Haddad, candidato do PT à Prefeitura de São Paulo, diz que o mensalão começou com o PSDB em Minas Gerais, antes do governo Lula.

https://youtube.com/watch?v=6eXut7GKzK0

Ad hominem

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Em latim, “Ao homem”. É quando o orador, por falta de argumentos suficientes para demonstrar seu ponto de vista, em vez de atacar uma ideia ou uma ação se volta contra aquele com quem discute.

Exemplo: Acuado em debate, Serra (PSDB) se despesera e ataca Haddad, dizendo que ele e Lula (PT) procuraram Kassab (PSD) para apoiá-los, mas, como o prefeito não cedeu, virou “o capeta” para os petistas. “Porque, para o PT, as coisas funcionam assim: se você não o apoia, é o diabo.”

Ad ignorantiam

Um verdadeiro brinde “à ignorância”, como diz a expressão em latim. Recurso em que o orador tira proveito do desconhecimento de seu interlocutor sobre um determinado tema para encerrar o assunto.

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Exemplo: Quando questionado pelo jornalista César Tralli, no Jornal Hoje, sobre um processo aberto por uma funcionária que o acusava de pagá-la com dinheiro público, e com a qual acabou fazendo um acordo, Celso Russomanno (PRB) desconversou. Não detalhou o acordo que encerrou o processo sem condená-lo, disse que o caso estava encerrado e emendou o seu mantra na entrevista, “César, vamos falar de São Paulo?”. (A partir dos 5 minutos do vídeo.)

Ad misericordiam

Em latim, algo como “À misericórdia”. É quando o orador lança mão de argumentos capazes de provocar culpa ou piedade no interlocutor, como mencionar as dificuldades enfrentadas pelas classes mais baixas ou por ele mesmo, no começo da vida.

Exemplo: Em seu programa eleitoral, o tucano José Serra sempre faz questão de lembrar de sua origem simples. “Nasci em uma família humilde na Mooca, todo mundo sabe que meu pai vendia fruta no Mercado Municipal.”

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https://youtube.com/watch?v=AE2oAIVowJM

Perguntas complexas

Em um debate, é comum que um candidato faça ao outro perguntas que parecem complexas. É uma forma de deixar o rival numa situação constrangedora. Vale até empregar argumentos que não são necessariamente verdadeiros para que o oponente se contradiga e, assim, seja mal visto pelos eleitores.

Exemplo: No debate do segundo turno pela Prefeitura de São Paulo realizado pelo SBT, Fernando Haddad (PT) disse que José Serra (PSDB) estava defendendo “ideias muito polêmicas”, como a taxa de inspeção veicular, para então perguntar a opinião do concorrente sobre a proposta de pedagiar as estradas estaduais de acordo com a quilometragem percorrida. Serra foi rápido, e tratou de dizer que a proposta atribuída por Haddad ao governo estadual (e tucano) paulista era mera especulação e que não concordava com ela (aos 4’50” do vídeo).

https://youtube.com/watch?v=AE2oAIVowJM

Distração

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É a tática de trazer à dicussão assuntos sem nenhuma relação com o que está sendo debatido, na tentativa tanto de se esquivar de temas espinhosos como de deitar conhecimento sobre um tema que o orador domina ou no qual leva vantagem.

Exemplo: No debate do segundo turno pela Prefeitura de São Paulo promovido pelo SBT, Serra (PSDB) pergunta a Haddad (PT) sobre os planos que ele tem para praças e parques. Provavelmente sem resposta adequada, o petista desvia do assunto falando de saneamento básico. Haddad faz uso também do recurso retórico chamado de non sequitur, algo como “sem sequência”, em que descontinua um assunto. O non sequitur também pode ser, mas não necessariamente é, uma forma de distrair o interlocutor (logo no começo do vídeo).

https://youtube.com/watch?v=AE2oAIVowJM

Ironia e sarcasmo

Recursos usados sempre com a intenção de diminuir o oponente e fazê-lo parecer ridículo perante os que o escutam. Além de ferir a autoestima do rival e quem sabe levá-lo a dizer batatadas, pode ser uma maneira de conquistar a torcida. Sem bem usada, é claro — do contrário, o orador pode angariar antipatia.

Exemplo: “Sabe uma coisa que eu invejo em você, Fernando? A capacidade de não dizer nada”, disse Serra a Haddad no debate do SBT (aos 2’40” do vídeo).

Metáforas

Ajudam o espectador a compreender questões novas ou que não lhe são familiares, a partir de algo que já é bem conhecido. O presidente Lula ficou famoso pelas suas metáforas, que aproximavam questões políticas complexas do universo de seus eleitores.

Exemplo: Em 2008, o presidente comparou a crise econômica a uma diarreia em discurso. Literariamente, pode ser um horror, mas entre o eleitorado do petista tem uma boa receptividade. 

Slogans

Os marqueteiros políticos sabem disso: assim como acontece na publicidade, uma campanha eleitoral deve ter frases de efeito, sentenças que sejam fáceis de memorizar e que passem a mensagem desejada.

Exemplo: Na campanha de Haddad (PT), o candidato usa a palavra “novo” para tudo. É “um novo homem” para “uma nova cidade” e para “um novo tempo”. Essa técnica da repetição, na retórica, também pode ser chamada de ad nauseam ou anáfora.

As artimanhas do discurso

Muitas figuras de linguagem usadas na retórica são usadas pelos políticos. Assistir a debates é quase uma aula prática de oratória. “É por isso que eles surtem efeito”, diz Sam Leith, autor do livro You Talkin’ To Me? Rhetoric From Aristotle to Obama (Você está falando comigo? Retórica de Aristóteles a Obama), lançado no Reino Unido no ano passado e ainda não editado no Brasil.

Tríades, em que são usados três termos em uma frase só, como “Sangue, suor e lágrimas” ou “Vida, liberdade e a busca da felicidade”, aparecem em todos os discursos. Eles também usam anáforas, quando uma frase ou palavra é repetida sucessivamente no começo de várias sentenças, a fim de enfatizar o que está sendo dito, como em “Quando fui Ministro da Educação, criei escolas. Quando fui prefeito, não haviam enchentes. Quando fui governador, melhorei o transporte público”. E antítese, ou seja, comparar uma coisa com outra, como em “Faça amor, não faça guerra”, é outra favorita.

“As celebridades também usam dessas técnicas. É muito comum vê-las falando lugares comuns. Em entrevistas, você as verá falar sobre alguma experiência humilhante que as tornou mais fortes, ou mais humildes, vai ouvi-las falando sobre suas jornadas, e assim por diante”, diz Leith.

A retórica é tão poderosa que permite a alguém convencer até mesmo sem ter razão, como frisa o filósofo alemão Arthur Schopenhauer em Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão, em que propõe 38 estratagemas para dobrar seu interlocutor, nem alguns um tanto obscuros e até desonestos.

As bases – Aristóteles dividiu em três grupos os elementos que devem ser observados em um discurso. O primeiro é chamado de ethos, e diz respeito à credibilidade que o orador deve transmitir à audiência. Essa credibilidade pode estar implícita, quando o interlocutor já conhece aquele que fala ou bota fé em suas credenciais – como nas palestras de peritos. Ou pode ser inserida no discurso, caso comum entre os políticos, que adoram lembrar ao eleitor dos cargos que já ocuparam – em ministérios, prefeituras etc. – para despertar sua confiança.

A segunda base de elementos discursivos definida por Aristóteles é chamada de pathos, e compreende o conteúdo emocional do texto – capaz de evocar simpatia, compaixão ou até medo, dependendo do objetivo do orador. Esse grupo de elementos tem sido fundamental nas lições de moral proferidas pelos ministros do STF no julgamento do mensalão. “O fato delituoso é tanto mais grave na medida em que, a cada desvio de dinheiro público, mais uma criança passa fome, mais uma localidade desse imenso Brasil fica sem saneamento, o povo sem segurança e sem educação e os hospitais sem leito”, disse o ministro Luiz Fux ao condenar o publicitário Marcos Valério e seus sócios por desvio de dinheiro público.

A terceira e última base é chamada de logos: é a lógica do discurso. Diz respeito aos argumentos que o orador deve escolher e encadear para que seu discurso faça sentido e a mensagem que deseja seja transmitida. Entram aí fatos, números, estatísticas e tudo o que possa corroborar a tese apresentada. Esta, segundo Aristóteles, é a parte mais importante do discurso, mas sozinha não tem efeito nenhum.

Tempos modernos – Depois de Aristóteles, inúmeros outros estudiosos se dedicaram a estudar a retórica e aprimorá-la, do orador romano Cícero, no século II antes de Cristo, a filósofos modernos como Chaim Perelman (1912-1984) e Kenneth Burke (1897-1993). Ambos introduziram conceitos essenciais, principalmente em relação ao ethos, como o da identificação, de Burke, segundo o qual um orador usa elementos conhecidos pelo interlocutor para se aproximar dele. É por isso que tantos políticos investem em parecer “do povo” – seja exaltando a sua origem humilde, como Lula, ou comendo sanduíches de mortadela em público, como Jânio Quadros.

“O discurso depende daquele para quem falamos, isto é, da natureza psicológica do interlocutor, da sua condição de vida, sua formação intelectual, seus valores culturais. Tudo isso tem de ser levado em conta por quem fala, para que se descubra a maneira mais eficaz de atingir quem o escuta”, explica o professor Martinho.

Outro recurso valioso proposto pela filosofia moderna é o da audiência universal. Segundo o polonês Perelman, um orador, quando fala, deve se dirigir a uma plateia ampla em vez de falar por minorias ou para um público específico. Afinal, assim ele terá chances de cativar mais ouvidos.

Como melhorar? – Para dominar a arte do discurso, é preciso treino. “Todo mundo pode correr 100 metros, mas é preciso trabalho duro e muita técnica para ser Usain Bolt”, diz Leith. Ele tem razão. Uma análise dos grandes mestres da retórica (veja lista abaixo) comprova: um discurso brilhante raramente surge de improviso, ele demanda suor. Estadistas como o britânico Winston Churchill escreviam os próprios textos e os editavam até soar bem, depois liam em voz alta em frente ao espelho, ensaiando também a linguagem corporal que daria ênfase ao que fosse dito. Os argumentos utilizados também podem ser escolhidos de antemão. “É possível compor o texto prevendo a recepção do ouvinte ou leitor”, diz Martinho.

Esforçar-se para melhorar o discurso vale a pena. “Uma argumentação coerente e bem estruturada ajuda a alcançar os propósitos que se tem em mente”, diz a professora Lineide Salvador Mosca, coordenadora de Estudos de Retórica e Argumentação na FFLCH-USP. Segundo ela, é importante que o orador preste atenção à impostação da voz e sua tonalidade, à gestualidade e à movimentação no cenário em que se dá o discurso, assim como aos elementos da memória coletiva – e afetiva – da audiência.

Para quem deseja se aprimorar, uma dica de leitura é o Sermão da Sexagésima, do padre Antônio Vieira. “Para Fernando Pessoa, Vieira era o ‘imperador da língua portuguesa’. Esse sermão tem por matéria a arte mesma de discursar. Nele, o padre diz que o pregador não deve preocupar-se em agradar nem em parecer desagradável ao ouvinte, pois quem ouve não deve sair da igreja contente ou descontente com o pregador, mas insatisfeito consigo mesmo”, finaliza Martinho.

Antonio Vieira viveu no século XVII e até hoje é considerado um dos oradores mais influentes da língua portuguesa. A retórica, como se vê, é uma poderosa arma de persuasão.

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