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Santo do pau oco: sultão quer lei religiosa para os outros

O fabulosamente rico monarca de Brunei cria problemas para si mesmo e aliados ao impor o rigor da sharia, incluindo morte para homossexuais e adúlteros

Por Vilma Gryzinski 8 abr 2019, 06h17

Se a lei religiosa que os fundamentalistas muçulmanos seguem ao pé da letra fosse aplicada para todos em Brunei, o sultão Hassanal Bolkiah correria o risco de ser morto por lapidação. Pedradas, mesmo.

No tempo em que ele e o irmão, Jefri, arrasavam em Londres, forrados por petrodólares aparentemente infinitos, “permitiam-se fazer praticamente tudo o que é proibido num país muçulmano”, escreveu o jornalista Mark Seal numa reportagem da Vanity Fair sobre as extravagâncias do príncipe caçula, posteriormente banido.

A ex-stripper americana Jillian Lauren chegou a escrever um livro sobre a época em que foi recrutada para integrar o plantel de 40 mulheres absurdamente lindas e bem pagas mantidas pelo príncipe Jefri para servi-lo em sistema de rodízio sexual.

Num gesto considerado de extrema honra para ela, Jillian foi “emprestada” pelo irmão para o sultão Bolkiah. O rei mandou um helicóptero para levá-la até o hotel onde estava e magnanimamente aceitou um ato sexual alternativo.

Como passou a vida adulta casado com a esposa número um, alternando outras, uma aeromoça e uma apresentadora de televisão, que chegavam e partiam (sem títulos, joias nem pensão), Bolkiah incidiu em adultério, punido com a pena de morte pelos mandamentos da sharia.

Incorporada ao código penal desde 2014, em regime gradual, a sharia agora entra na fase para valer.

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Seis crimes específicos são enquadrados nessa interpretação tradicional: amputação de mão para roubo; amputações adicionais para roubo a mão armada; adultério, atos homossexuais e estupro, são punidos com morte por lapidação (solteiros em conjunção carnal pegam chibatadas e um ano de cadeia); chibatadas para falsas acusações desses atos; chibatadas também para punir o consumo de bebidas alcoólicas; pena de morte para a apostasia.

A barbárie dessas punições, praticadas em poucos países ultrafundamentalistas como a Arábia Saudita, provocou uma onda de reações revolta.

Muitos deram risada quando o ator George Clooney, que tem pretensões políticas, convocou um boicote às propriedades mais fulgurantes da caixa de tesouros do sultão: os nove hotéis de luxo que tem na Europa e na Califórnia.

Quantas pessoas podem se hospedar no Plaza Athénée de Paris, no Dorchester de Londres ou no Bel-Air de Los Angeles?

Pouquíssimas, mas na era digital o protesto está colando. A presença dos hotéis nas redes sociais teve que entrar para a “clandestinidade”. Oxford, o Kings College e a Universidade de Aberdeen estão considerando cancelar os diplomas de doutor honoris causa dados a Bolkiah, sempre em reconhecimento a doações generosas.

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Até anúncios de Brunei Darassalam (ou a Morada da Paz, nome completo do país) foram tirados do metrô.

Desfilar por Londres como, literalmente, um sultão, jogar polo com o príncipe Charles, receber honrarias da família real e ser tratado por altas personalidades do governo como o melhor cliente do mundo, salamaleques especialmente apreciados pelo rei de um país que foi protetorado britânico até 1984, podem ser regalias congeladas ou passadas.

No momento, a ficha do sultão está suja. Por que Bolkiah resolveu apertar o rigor religioso que ele mesmo não seguia, num país com considerável população não-muçulmana e sem movimentos salafistas importantes?

Ficou mais religioso ou mais hipócrita? Está se escudando na religião por prever pressões futuras, com o petróleo em queda e, no caso do Brunei, eventualmente exaurido?

O Brunei fica na parte menor da Ilha de Bornéu, dividida ainda com a Malásia e a Indonésia, países onde o Islã demorou para chegar, mas implantou-se firmemente, apesar da força das crenças tradicionais.

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De fim de mundo virou um milagre produzido pelas reservas de petróleo e gás, suficientes para dar à população de menos de 500 mil habitantes casa e comida subsidiadas, escola e sistema de saúde de graça.

De graça mesmo, pois não existem imposto de renda e contribuições sociais (o sistema é chamado humoristicamente de Shellfare, um trocadilho com a palavra “wellfare”, usada para o estado de bem-estar social; praticamente todo o petrôleo comerciado pela Shell vem do Brunei) .

O PIB per capita é de quase 32 mil dólares, um padrão na faixa da Itália e da Espanha. A dívida pública é zero.

Bolkiah tornou-se o homem mais rico do mundo no fim dos anos oitenta, valendo uns 40 bilhões de dólares. Extravagâncias de mau gosto como o maior palácio do mundo – 200 mil metros quadrados – e rigores religiosos como a proibição do uso a palavra Alá por outras religiões como sinônimo de Deus ficaram relativamente confinadas até que dois escândalos abalaram o sultanato.

Primeiro, foi o desvio de quase 15 bilhões de dólares praticado pelo irmão a quem Bolkiah permitia tudo. Com o príncipe levado a julgamento, seu estilo de vida, por assim dizer, ficou escancarado.

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O rodízio de mulheres cobertas de joias e com uma bolsa-implante mamário, o iate chamado Tits (ou Peitos, com um logotipo de seios femininos), as orgias, os palácios, a cascata de cristal de dez metros de altura com uma estátua de ouro maciço do príncipe jogando polo, foi tudo exposto.

O príncipe dava Rolls Royces de presente a amigos e chegou a comprar 200 ternos iguais de uma vez só. Gastava, em média, 40 milhões de dólares por mês.

Os extras eram bancados por desvios do Fundo Soberano de Brunei, criado para sustentar o país depois que o petróleo acabar.

O harém de Bornéu era replicado por outro em Londres. Segundo Jillian Lauren, recrutada quando tinha 18 anos, Jefri tornou-se um colecionador cada vez mais ambicioso: abria revistas e falava “quero esta”.

Strippers, coelhinhas da Playboy e celebridades menores disputavam quem ocuparia a posição de namorada número um e número dois. Quando Jeffri e seus amigos estavam para chegar, um lustre redondo de cristal baixava no teto da discoteca do palácio das orgias e as mulheres começavam a dançar.

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Na ausência dele, entediavam-se ou faziam brincadeiras sexuais (o lesbianismo é punido de maneira menos severa, com chibatadas , pela sharia).

Tudo isso já era conhecido desde o fim dos anos noventa, quando uma ex-Miss Estados Unidos, Shannon Marketic, denunciou que, atraída por uma falsa promessa de trabalho promocional, foi drogada e mantida como escrava sexual. O processo deu em nada porque o acusado desfrutava de imunidade diplomática.

Como em muitos outros países muçulmanos, as práticas mais fundamentalistas tiveram um renascimento em Brunei, frequentemente por incentivo da Arábia Saudita.

Ironicamente, a monarquia saudita está tentando uma modernização, apesar de detalhes desagradáveis como o jornalista morto e esquartejado no consulado em Istambul.

Como rei numa monarquia absoluta, Bolkiah pode fazer o que quiser. Além de sultão, é primeiro-ministro, ministro da Economia, da Defesa e das Relações Exteriores. Não precisa sequer fingir que dá ouvidos a algum tipo de órgão legislativo, exceto os ulemás, os líderes religiosos.

A conselho deles, aprovou maluquices como proibir o natal em público (decorações e outras referências, muitas vezes feitas mais por imitação de hábitos ocidentais do que para atender aos 10% de cristãos do país).

Já o gosto da família pela música tem livre trânsito. Quando Whitney Houston estava viva, cantou numa festa do sultão e recebeu um cheque em branco para preencher com quanto achasse justo (colocou 7 milhões de dólares).

Maria Carey saiu mais em conta: o príncipe herdeiro contratou-a para cantar três músicas por um milhão de dólares.

Aos 71 anos, o sultão pode ter optado por um estilo de vida mais austero, diferente da época em que, segundo a descrição de Mark Seal, pelos cassinos de Londres, sem capacidade de distinguir entre amigos e bajuladores, “transformando homens em marajás”.

Foi ele quem bancou um certo Adnam Khashogui, o saudita que se transformaria no maior intermediário de armas do mundo. O egípcio Mohamed Al Fayed teve uma ajudazinha para comprar a Harrods. Partilhavam o gosto por hotéis de luxo, esperando ganhar por osmose o prestígio social de lugares icônicos da Europa.

Fayed comprou o Ritz de Paris, de onde seu filho e herdeiro saiu para o fatal percurso com a princesa Diana, com quem tinha entrado num namoro arranjado pelo pai. Bolkiah comprou nove dos mais estrelados nomes do gênero. Seu irmão comprou a Asprey de Londres, tradicional joalheria.

“Quando se espalhou a notícia que o sultão era mão aberta, comerciantes de todo o globo baixaram em Brunei, vendendo praticamente tudo o que tinham a oferecer: 17 jatinhos particulares, milhares de carros de luxo, ‘um Smithsonian’ de joias importantes e um tesouro em obras de arte, incluindo um Renoir de 70 milhões de dólares”, descreveu Mark Seal na Vanity Fair.

Ele e o irmão tinham uma frota de iates, disputavam corridas noturnas com suas coleções de Ferrarris, importavam aviões lotados de cavalos e de argentinos bons de polo. E, naturalmente, as mulheres.

O sultão não só rompeu com o irmão como, posteriormente, mandou confiscar todas as propriedades dele e da família em Brunei. Não voltou a se casar com esposas cada vez mais jovens e bonitas. Não vai ficar exatamente pobre se seus hotéis de luxo perderem clientes e prestígio.

Provavelmente, também não serão aplicados os castigos bárbaros para homens que fazem sexo com homens ou com mulheres com quem não são casados. Nem haverá cirurgiões que amputem membros como punição por crimes.

Mas, em vez de promover a imagem do Islã como uma religião magnânima e espiritualmente vital para milhões e milhões de fieis, Bolkiah está expondo os aspectos grotescos da sua interpretação fundamentalista.

O sultão bilionário finalmente encontrou uma coisa que não tem preço: arrastar na lama o nome de sua própria religião.

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