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Pandemia não aumentou ajuda a mais fracos, diz presa por salvar refugiados

A ativista alemã Carola Rackete foi presa por desafiar a orientação da União Europeia e atracar na Itália ao invés de retornar à Líbia, de onde veio o bote

Por Amanda Péchy Atualizado em 26 fev 2021, 10h50 - Publicado em 29 dez 2020, 08h01

Em junho de 2019, a ativista alemã Carola Rackete, no comando do navio de resgate Sea-Watch 3, resgatou 53 pessoas em um bote inflável em alto mar. O grupo tentava uma arriscada passagem pelo Mar Mediterrâneo, para tentar refugiar-se na Europa. Esgotados e em péssimas condições de saúde, os imigrantes precisavam de assistência médica. Carola, então, decidiu ignorar as orientações da União Europeia para levar o grupo de volta à caótica Líbia, de onde o bote tinha zarpado, atracando na Itália. E foi presa.

A história atraiu atenção mundial, até porque foi a primeira vez que um capitão de navio foi detido, e não apenas fichado criminalmente, por “auxiliar imigração ilegal”. Contudo, a ativista de 32 anos, cujo livro sobre o ocorrido acaba de ser lançado no Brasil, rejeita a importância do acontecimento – assim como o título de heroína.

Em primeiro lugar, Carola destaca que seu caso está longe de ser isolado. No ano passado, pelo menos 160 pessoas foram processadas ou investigadas por chamados crimes de solidariedade, configurados por qualquer ajuda a imigrantes e refugiados dentro da União Europeia.

Em segundo lugar, desde que o governo italiano confiscou um pequeno navio de resgate chamado Iuvenda em 2017, cuja tripulação está sendo investigada sob a lei da máfia por compor uma gangue criminosa, todos os que botam o pé em uma embarcação de resgate têm consciência de que podem ser presos (especialmente capitães, que têm risco legal maior).

Em terceiro, ela não quer tirar os holofotes e a atenção daqueles de quem o mundo deveria estar falando – as 53 pessoas dentro do bote inflável. A propósito, todos sobreviveram, mas foram ineficientemente separados em grupos de cerca de dez pessoas e acolhidos pela Finlândia, Portugal, França e Alemanha depois de seis meses. 

“Não foi uma surpresa quando me prenderam”, conta Carola, que decidiu aceitar o chamado de última hora da ONG Sea Watch porque sabia que seria difícil encontrar um outro capitão. “E não devemos nos focar em um capitão branco aleatório, mas em porque pessoas precisam arriscar suas vidas para se deslocarem entre fronteiras, qual é o contexto político em que isso acontece e quais são suas histórias”.

Por isso, a ativista dedica seu livro, “É hora de agir”, às vítimas da obediência civil. Para ela, é natural que, por vezes, as regras atualmente em vigor em uma sociedade contrastem com a percepção moral de seus membros. Nesses momentos, a desobediência civil precisa ser utilizada para gerar mudanças, como foi o caso de movimentos históricos pelos direitos das mulheres em todo o mundo, direitos civis nos Estados Unidos e contra o apartheid na África do Sul.

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Apesar do então ministro do Interior italiano, o conservador Matteo Salvini, classificar o incidente como um “ato de guerra” cometido por uma “pirata” e “fora da lei”, Carola foi libertada alguns dias depois, em julho. Desde então, ela continuou trabalhando como ativista e freelancer, mas, como o mundo inteiro, foi surpreendida pela pandemia de coronavírus no início de 2020.

“Apesar da coesão comunitária que a pandemia despertou, com pessoas ajudando vizinhos que elas nunca haviam visto, por exemplo, isso continua limitado nas mesmas linhas raciais”, afirma. “Ou seja, a pandemia não aumentou a solidariedade com os mais fracos”, conclui. O famigerado campo de refugiados de Moria, nas Ilhas Gregas, é um grande exemplo: sem a possibilidade de praticar distanciamento social, nem água para lavar as mãos, milhares de pessoas foram deixadas na mão. Para piorar, em setembro, 13.000 pessoas ficaram desabrigadas devido a um grande incêndio no campo.

O coronavírus também aumentou enormemente as desigualdades. Enquanto pessoas ricas como Jeff Bezos ganharam bilhões durante esse ano, a classe trabalhadora perdeu seus empregos, gerando um impacto econômico que deve extrapolar a pandemia. Somada a isso, há a questão da vacina: espera-se que países da África só consigam vacinar toda sua população em 2024, enquanto metade da população espanhola, por exemplo, estará imunizada até junho do ano que vem.

“O cenário é ainda pior do que na fronteira dos Estados Unidos com o México. A União Europeia está cooperando com regimes autoritários, como a Líbia e a Turquia, apenas para conter imigrantes e impedir que cheguem a um local seguro para pedir asilo”, declara Carola.

A ativista afirma que é essencial pensar nessas questões agora, porque o mundo deve observar uma crise migratória ainda maior no futuro próximo por conta das mudanças climáticas. Segundo o Institute for Economics and Peace (IEP), uma think tank que produz índices anuais de terrorismo global e paz, 1,2 bilhão de pessoas serão forçadas a se deslocar até 2050, seja dentro do próprio país ou para outras nações. Algumas serão afetadas por fenômenos como furacões e queimadas, mas a maioria vai se mudar por perder o sustento e a agricultura.

O problema é que na Convenção de Genebra de 1951, que criou o Estatuto dos Refugiados após a Segunda Guerra Mundial, articuladores nem sonhavam com a crise climática como gatilho para o deslocamento. Quase 70 anos depois, o planeta é praticamente outro, e a população de países industrializados e desenvolvidos, maiores responsáveis pela deterioração da atmosfera e florestas, será a menos afetada pelo aquecimento global.

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“A comunidade internacional tem a tarefa de garantir que refugiados possam cruzar fronteiras se quiserem. Pessoas podem morrer só porque alguém traçou uma linha em um mapa, provavelmente colonizadores. Precisamos de um acordo internacional para reconhecer os direitos dos migrantes do clima”, afirma Carola.

Para ela, o que não falta são fatos sobre a crise humanitária e climática. Contudo, despertar a consciência das pessoas é apenas o primeiro passo: é preciso construir mensagens que transformem imigrantes de “o outro” parte do grupo. Um de seus momentos “eureca” a respeito do aquecimento global, por exemplo, foi uma visita a uma habitante do Leste das Ilhas Maldivas, que a mostrou marcas de uma geleira que havia retraído por quilômetros, movimento que aconteceu não ao longo de séculos, mas durante o tempo de vida de seu filho.

“Não podemos esquecer que as pessoas gostariam muito de ficar em casa. Quase ninguém quer deixar o lugar que cresceu, onde estão seus amigos e familiares. Mas são forçadas a isso”, diz a ativista.

Com “É hora de agir”, ela pretende evidenciar a conexão entre diferentes bandeiras e unir movimentos. A crise climática e a crise dos refugiados, afinal, estão conectadíssimas. Com uma aliança de grupos mais ampla, fazer uma mudança fica um pouco menos impossível.

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