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A Jogada do Chefão

Pablo Escobar, o maior narcotraficante do mundo, constrói sua própria cadeia, estabelece as condições da rendição e assina a trégua

Por Acervo VEJA
Atualizado em 9 set 2016, 12h08 - Publicado em 2 set 2016, 08h04
Reprodução de reportagem publicada em 26 de junho de 1991, edição 1188. Veja mais no Acervo VEJA,
Reportagem publicada em 26 de junho de 1991, edição 1188. Veja mais no Acervo VEJA, (Reprodução/VEJA)

Contrariando o espírito latino, foi tudo muito lacônico. Reunida na manhã de quarta-feira em Bogotá, a Assembleia Nacional Constituinte da Colômbia, convocada para rearrumar a ordem institucional de um país devorado até a alma pela violência e pelo poder dos narcodólares dos barões da cocaína, deu a senha com apenas seis palavras: “Fica proibida a extradição de colombianos”. Poucas horas depois de ter sua principal exigência atendida, o beneficiário número 1 do novo artigo da Constituição colombiana foi mais lacônico ainda. “Gostei”, resumiu Pablo Escobar Gaviria, o homem mais procurado do mundo, ao final de uma rápida inspeção de seus novos domínios. Ali, na prisão especial construída no alto da serra que circunda a cidade de Medellín, o maior traficante de cocaína de todos os tempos acabava de desembarcar não como um bandido sanguinário que vai pagar por seus crimes, mas como um suserano feudal que decide fazer um recuo tático e assinar uma trégua.

Não é de estranhar que tenha apreciado as instalações. Da mesma forma como ditou as regras do jogo à Constituinte, foi ele quem escolheu o local, financiou a construção, estabeleceu as normas de segurança e até selecionou os guardas encarregados de zelar por sua proteção na prisão de Envigado. As prerrogativas do detentor de uma fortuna avaliada como uma das trinta maiores do mundo – 3 bilhões de dólares, segundo cálculo da revista americana Forbes – foram mantidas em todas as circunstâncias. Em nenhum momento se permitiu mostrar imagens de Escobar, para protegê-lo de seus muitos inimigos. Segundo descrições das poucas pessoas que o viram, ele fez uma pequena cirurgia plástica no nariz, mudou o penteado e exibe uma barba, precocemente grisalha para seus 41 anos, no lugar no antigo bigodão de cantor de churrascaria. Os cuidados com a segurança se multiplicaram. Para facilitar o trajeto do helicóptero que o apanhou num local secreto na zona rural de Envigado, as autoridades colombianas fecharam o espaço aéreo da região de Medellín.

“Esposa Inigualável” – “O helicóptero parou apenas dez segundos e eu o recebi comum abraço”, contou o padre Rafael Herreros, 84 anos, conhecido nacionalmente pelo programa religioso que mantém na televisão há três décadas e transformado em intermediário nas negociações para a rendição do poderoso chefão. Escobar estava acompanhado por dois lugar-tenentes e, ao chegar na prisão, entregou graciosamente seu revólver. Durante o rápido percurso, ele falou a um único jornalista – também previamente selecionado. Parecia mais um jogador de futebol ao entrar em campo para disputar uma final: “Com minha apresentação e a minha sujeição à Justiça, desejo prestar uma homenagem a meus pais, a minha inigualável esposa, a meu filho pacifista de 14 anos, a minha pequena bailarina de 7 anos e a toda minha família, a quem quero tanto”.

Assim que se confirmou a rendição do capo da coca, a Colômbia foi tomada por um sentimento generalizado de alívio. Atormentados por uma guerra que faz a violência urbana brasileira parecer um piquenique de seminaristas, os colombianos acabaram sofrendo de uma espécie de esquizofrenia. Para eles, a droga é um problema dos Estados Unidos, onde são despejadas cerca de 80% das 500 toneladas de cocaína que os traficantes locais comercializam anualmente. Na Colômbia, acredita-se, o problema é a violência brutal desfechada pelos chefões quando se sentem acuados. Foi cedendo a esse raciocínio compartimentalizado que o presidente Cesar Gaviria – eleito no ano passado depois do assassinato do candidato favorito, o senador Luis Carlos Galán, um dos muitos crimes pregados na conta sangrenta de Pablo Escobar – voltou atrás na promessa de “não ceder 1 milímetro” na luta contra os narcotraficantes e manter o acordo que permitia o castigo mais temido pelos chefões da droga: a extradição para os Estados Unidos.

Não durou muito essa promessa. No começo de seu governo, Gaviria chegou a extraditar quatro traficantes, todos peixes menores, mas logo sentiu o peso da vendeta alucinada dos criminosos, através da intensificação dos atentados terroristas numa escala que lembrava o Líbano do auge da guerra civil. A extradição atiça os ânimos nacionalistas dos colombianos e leva a capacidade de intimidação dos traficantes a paroxismos de violência, e não se encontram juízes ou políticos (ainda vivos) para aprová-la ou aplicá-la. O jeito foi negociar.

Sem Rosto – Enquanto mantinha uma persistente perseguição policial aos barões da coca, o presidente acenou com um acordo: quem se entregasse voluntariamente teria a garantia de que não passaria os anos que lhe sobrassem numa cela americana e ainda se beneficiaria de redução das penas. “A extradição não é o único e nem sequer o principal instrumento para lutar contra os narcotraficantes, mas, agora que permanece abolida por decisão da Assembleia Nacional Constituinte, somos obrigados a fortalecer a Justiça para evitar que a Colômbia se converta num santuário de delinquentes”, afirmou Gaviria depois da rendição de Pablo Escobar. Para reforçar a mensagem, o governo colombiano mandou publicar na sexta-feira passada um anúncio de página inteira no jornal The Washington Post com um balanço vistoso de sua luta contra narcotraficantes. Os chefões mais conhecidos estão todos lá: Carlos Lehder (extraditado em 1987 para os Estados Unidos, onde cumpre prisão perpétua), Gonzalo Rodríguez Gacha (morto num tiroteio com a polícia em 1989), os irmãos Jorge e Fabio Ochoa (que se entregaram no ano passado) e o mais novo trunfo, Pablo Escobar.

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Nem a propaganda oficial nem a moderada expectativa de que a violência diminua, pelo menos por algum tempo, convenceram o jornal El Espectador, o único órgão de comunicação de projeção nacional a endossar a mão estendida aos reis da droga pelo governo e pela Assembleia Constituinte. “A prova de que o terror se impôs e de que a Justiça colombiana não infunde temor é a proibição da extradição de um dos criminosos mais perseguidos e poderosos do mundo”, disse o jornal em editorial. Funcionários e proprietários do El Espectador sabem perfeitamente qual é o preço a pagar por essa coragem. O jornal, que era originalmente de Medellín, teve que transferir suas instalações para Bogotá, mas nem por isso escapou da sanha dos assassinos a soldo dos barões da droga. Em 1986, foram assassinados o correspondente do jornal em Leticia, na fronteira com o Brasil, e em seguida seu proprietário e editor, Guilhermo Cano. Em 1989, um carro-bomba na sede do El Espectador deixou oitenta feridos. Até o começo do ano, o jornal era distribuído em Medellín sob escolta policial. Na semana passada, nem mesmo os jornalistas colombianos sabiam quem, entre os colegas, estava fazendo as reportagens sobre a rendição de Pablo Escobar.

O fato de que um repórter, para trabalhar, tinha que se manter na clandestinidade, enquanto o poderoso chefão se rendia cercado de todas as garantias de segurança é um retrato eloquente da inversão de valores que o poder paralelo das drogas criou na Colômbia. Num país revirado de cabeça para baixo, onde os traficantes criaram “uma organização mais forte do que o Estado”, segundo a definição do ex-presidente Belisario Betancur, os honestos se escondem e os bandidos se exibem. Outro jornal colombiano, El Tiempo, funcionava em Medellín até o ano passado num “aparelho” disfarçado de escritório de contabilidade. Em outro local, a redação “oficial” estava praticamente devastada, com um pequeno número de funcionários de fachada, de forma a minimizar as vítimas em caso de atentado. Para levar adiante os processos contra traficantes, o governo criou os “juízes sem rosto”, que jamais são identificados, na tentativa de lhes salvar a pele e a imparcialidade.

Sociedade Drogada – Para quem vive fora da Colômbia, é fácil condenar jornalistas que se calam, juízes que se intimidam ou presidentes que voltam atrás em suas promessas. Para quem constata o poder estarrecedor dos barões da cocaína, que compram ou matam conforme suas necessidades, o surpreendente é que ainda haja quem os combata, de que maneira for. “Um observador sagaz de nossas realidades disse que toda a sociedade colombiana está drogada”, comentou o mais ilustre dos colombianos, o escritor prêmio Nobel Gabriel García Márquez. “Não por gosto pela cocaína – o que com certeza não é alarmante na Colômbia –, mas por uma droga muito mais perversa: o dinheiro fácil.”

E que dinheiro. O mercado mundial da cocaína movimenta por ano de 150 bilhões de dólares – mais do que toda a dívida externa brasileira. De meros traficantes de maconha, bandidos de segunda categoria, os delinquentes colombianos se transformaram, em pouco mais de quinze anos, em donos de uma rede multinacional que compra uma matéria-prima barata no Peru e na Bolívia e a coloca, já industrializada, nas mãos dos distribuidores de qualquer mercado do planeta. No caminho desse negócio altamente compensador, o lucro generoso abre portas que todo o esforço coordenado pelo governo americano, o mesmo que venceu o Exército de 1 milhão de homens de Saddam Hussein, não consegue fechar. São pistas clandestinas contas secretas, policiais, militares e até governos coniventes. O dinheiro da droga pode tudo. O general Manuel Antonio Noriega, que mereceu a honra de uma invasão americana para tirá-lo do poder, era um mero intermediário que recebia comissão para facilitar esse negócio multibilionário.

Os americanos desembarcaram, cercaram-no, prenderam-no e o levaram para ser julgado nos Estados Unidos. O Panamá continua servindo, como sempre, de escala para o tráfico. Mesmo que tivesse sido colocado para fora de combate, outras alternativas sempre estariam à mão. Países pequenos do Caribe e da América Central são portos seguros diante da capacidade de corrupção dos narcodólares. As Bahamas de praias paradisíacas já foram carinhosamente apelidadas pelos barões da coca de “o nosso porta-aviões”. O Brasil, com seu território imenso, serve de ponte para cerca de 50% de toda a cocaína que é exportada para a Europa e os Estados Unidos. Mais recentemente, a Argentina vem despontando como escala do tráfico e centro de lavagem de dinheiro da droga. Num processo aberto na Espanha, a cunhada e ex-chefe do cerimonial do presidente argentino Carlos Menem, Amira Yoma, é acusada de levar pessoalmente malas cheias de dólares “sujos” em suas viagens aos Estados Unidos.

Seguro-Desemprego – No epicentro dessa trilha de pó branco, bilhões de dólares e muito sangue estão os barões colombianos – tanto os conhecidos, hoje quase todos fora de ação, quanto os discretos, do Cartel de Cali. Na Colômbia, os chefões de Cali são chamados de “os inteligentes”, em contraposição ao estilo brutal e exibicionista do Cartel de Medellín, encarnado à perfeição por Pablo Escobar. Como um típico novo-rico a quem a fortuna rápida sobe à cabeça, ele começou a ter delírios de grandeza e até aspirações políticas, distribuindo benesses à população de Medellín e, principalmente, Envigado. A cidadezinha onde Escobar foi criado e despontou para o mundo do crime é um retrato da força da grana fácil: no único município de toda a Colômbia com seguro-desemprego, a prefeitura dispõe atualmente de uma sobra de caixa da ordem de 50 milhões de pesos – 80 000 dólares – , com os quais pretende incentivar a abertura de microempresas. A própria sede da prefeitura, um prédio de tijolos aparentes, concreto, vidro fumê e decoração suntuosa, poderia perfeitamente figurar em alguma próspera cidade americana.

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Enquanto construía com uma mão, com a outra Escobar matava. Na avaliação de seus concorrentes de Cali, foi ele quem convulsionou as regras do jogo ao mandar matar o ministro da Justiça Rodrigo Lara Bonilla, metralhado no centro de Bogotá, em abril de 1984. O assassinato do ministro, que vinha demonstrando excesso de zelo no exercício da profissão, sacudiu a opinião pública colombiana e desfechou uma perseguição inédita aos barões da droga. Desde então, o ciclo só fez se repetir: a cada novo assassinato de impacto, o governo ressuscitava o acordo de extradição com os Estados Unidos e apertava o cerco em torno dos traficantes. Esses, reunidos coletivamente sob um de conjunto de rock – Os Extraditáveis -, reagiam com mais violência ainda. O auge da ofensiva ocorreu entre setembro de 1989 e junho do ano passado, quando os narcotraficantes instalaram trinta carros-bomba, explodiram um Boeing da Avianca com 107 pessoas a bordo e detonaram meia tonelada de dinamite contra a sede da polícia secreta colombiana, matando setenta pessoas.

Vida Curta – Foi na tentativa de romper esse ciclo que as autoridades colombianas ofereceram o “acórdão” aos traficantes dispostos a se render. “A entrega de Pablo Escobar é a saída mais realista para o problema”, resigna-se o cientista político Eduardo Pizarro, da Universidade Nacional de Bogotá. “As novas fórmulas são positivas para ambas as partes do conflito e para o país em geral.” É essa a esperança dos colombianos – que a guerra termine ou, ao menos, se tenha uma trégua. Quanto ao tráfico, ninguém se ilude. Só este ano, com os irmãos do clã Ochoa já atrás das grades e Escobar supostamente baratinado com a perseguição policial, estima-se que tenha entrado 1 bilhão de dólares pela ventanilla siniestra – o guichê da esquerda através do qual o Banco Central colombiano legaliza o ingresso dos dólares “anônimos”, cuja origem não precisa ser declarada. Se o mesmo ritmo se mantiver, a conta baterá no fim do ano em 2,5 bilhões de dólares, mais do que a receita de qualquer exportação legal do país, como o café ou o petróleo. Ainda que Escobar e seus sequazes fiquem efetivamente fora de ação, caso não prossigam os negócios de dentro da prisão construída sob medida, os “discretos” de Cali continuam no mercado e sempre haverá novos candidatos a preencher espaços vazios. “Enquanto existir demanda, existirá o tráfico”, costuma dizer Pablo Escobar, agora recolhido em seu retiro na montanha, de onde o padre Herreros, eternamente esperançoso, acredita que ele saia em dois ou três anos – “tempo suficiente para que um homem refaça seus pensamentos, já que tem uma vida tão curta”.

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