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O Som e a Fúria

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Morre Rita Lee, pioneira do rock e da afirmação feminina, aos 75 anos

Vítima das complicações de um câncer, cantora teve hits que marcaram gerações e foi símbolo na luta contra a 'caretice' nos costumes

Por Felipe Branco Cruz Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 29 jan 2024, 12h12 - Publicado em 9 Maio 2023, 11h00

Foi em Rita Lee Jones de Carvalho, paulistana da Vila Mariana, que o baiano Caetano Veloso, ao compor Sampa, enxergou a mais completa tradução da maior metrópole do país. De ascendência americana e italiana, Rita Lee soube, como ninguém, traduzir o rock para os costumes nacionais. Ritmo surgido nos Estados Unidos e que, graças à deselegância discreta de Rita, conquistou toda uma geração de jovens brasileiros nos anos 60 e 70. Na noite desta segunda-feira, 8, o Brasil se despediu de Rita, a rainha do rock brasileiro, que morreu aos 75 anos, em sua casa, após dois anos de tratamento contra um câncer de pulmão. Com mais de 50 anos de carreira, Rita deixa uma marca indelével por seu pioneirismo na música e no comportamento. Foi a primeira mulher a tocar guitarra nos palcos do país e, em suas músicas e na vida pessoal, expôs temas e atitudes que desancavam arraigados tabus, das drogas à liberação sexual. Serena até os últimos dias, Rita comentou em 2020, em um depoimento a VEJA, sobre como encarava a morte: “Peço ao Universo que minha morte seja rápida e indolor, de preferência dormindo e sonhando que estou com minha família numa praia do Caribe”, disse.

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Nascida em 31 de dezembro de 1947, Rita começou a se interessar por música ainda na adolescência ao participar de vários conjuntos musicais adolescentes. Em 1965, ela conheceu os irmãos Arnaldo e Sérgio Baptista, uma amizade que revolucionaria a música brasileira. Com influências dos britânicos dos Beatles e do rock vindo dos Estados Unidos, o trio formaria no ano seguinte o grupo Os Bruxos, logo depois rebatizado de Os Mutantes, inspirado na ficção científica O Império dos Mutantes, de Stefan Wul. O nome foi sugerido por outro amigo da turma, o cantor Ronnie Von, à época apresentador do dominical O Pequeno Mundo de Ronnie Von, transmitido pela TV Record, onde a banda estreou em 15 de outubro de 1966. No ano seguinte, eles surpreenderam o país com uma apresentação memorável no III Festival da Música Brasileira, também na Record, acompanhando Gilberto Gil na música Domingo no Parque.

O primeiro álbum com os Mutantes foi lançado em 1968 e contou com hits como Baby (de Caetano Veloso), A Minha Menina (de Jorge Ben) e Bat Macumba (de Caetano e Gilberto Gil). No mesmo ano, a banda participaria também do lançamento de um dos movimentos mais emblemáticos da música brasileira, a Tropicália, com o álbum Tropicália ou Panis Et Circencis, com a participação de Caetano, Gil, Gal Costa, Tom Zé e Nara Leão. Com canções psicodélicas e o uso inovador e criativo de vários objetos como instrumentos musicais, os discos seguintes dos Mutantes entrariam para a história da música brasileira, como A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado (1970), Jardim Elétrico (1971) e Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets (1972). Até hoje, esses discos são influentes e cultuados no exterior.

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Em 1968, Rita se casou com o colega de banda Arnaldo Baptista, mas o relacionamento foi marcado por traições de Baptista e brigas. Em 1972, ela acabou expulsa da banda pelo próprio músico, marcando também o fim da formação clássica dos Mutantes. Com a saída da cantora, a banda perdeu o rumo, enquanto Rita engatou uma nova e fértil carreira musical no ano seguinte com a formação da banda Tutti Frutti, com Lúcia Turnbull, o guitarrista Luis Sérgio Carlini e o baixista Lee Marcucci. São desse período algumas das canções mais lembradas da artista, como Agora Só Falta Você, Esse Tal de Roque Enrow e Ovelha Negra. Esta última música, aliás, se tornou um dos hinos das meninas durante os anos da ditadura militar, com o marcante verso “foi quando meu pai me disse filha / você é a ovelha negra da família”.

Aos 28 anos, em 1976, Rita conheceu o guitarrista Roberto de Carvalho, por quem se apaixonou e que se tornaria seu maior parceiro musical e de vida até o fim. Em agosto daquele mesmo ano, já grávida de três meses de seu primeiro filho, Beto Lee, Rita foi presa pela ditadura por porte de maconha. A artista foi usada como exemplo de mau comportamento para a juventude da época. Elis Regina foi a única cantora a visitá-la na prisão, acompanhada do filho João Marcelo Bôscoli, então com 6 anos. Rita lembrava-se com muito carinho da visita. Em uma entrevista a Ronnie Von, a cantora relembrou do dia: “Quando o carcereiro falou: ‘Ô, Ovelha Negra, tem uma cantora famosa rodando a baiana, dizendo que vai chamar a imprensa. Ela quer te ver’.” Durante a visita, Elis exigiu que um médico visitasse a roqueira. Depois de alguns dias presa, Rita foi julgada e condenada a prisão domiciliar e multa de 50 salários mínimos. “Sempre fui considerada grupo de risco. Desde que entrei para o mundo da música, fui a artista mais censurada na época da ditadura no país, por ser tida como uma mulher perigosa para os bons costume da família brasileira”, disse a cantora a VEJA.

Após cumprir a prisão domiciliar, Rita ainda lançou mais um álbum com o Tutti Frutti, porém em 1978 decidiu seguir carreira-solo, tendo como inseparável companheiro o marido Roberto de Carvalho. Vêm dessa época grandes sucessos como Mania de Você, Chega Mais, Doce Vampiro, Lança Perfume, Nem Luxo Nem Lixo e muitos outros. Sobre um de seus maiores sucesso, Baila Comigo, disse a VEJA, também em 2020, que a canção foi composta em um sonho. “Ela me veio inteirinha em sonho, letra e melodia. Quando acordei, anotei a letra e fiz a harmonia no violão. Sinto que Baila Comigo foi um sopro vindo de alguma entidade indígena.”

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Nos anos seguintes, Rita seguiu fazendo shows, lançando discos e se dedicando a outros trabalhos, como o de escritora. Lançou diversos livros infantis do personagem Dr. Alex, além de uma autobiografia. Em 1995, ela foi convidada para abrir o show da banda Rolling Stones no Brasil. O último disco de estúdio, Reza, saiu em 2012 e dali em diante a cantora decidiu desacelerar, se isolou em sua casa, cuidando de seus animais e de suas plantinhas. “Desde que deixei os palcos, há oito anos, vivo confinada na minha toca, numa casinha no meio do mato cercada de bichos e plantas, só saindo para ir ao dentista, fazer supermercado, comprar ração para meus animais e, eventualmente, visitar meus netos. Hoje, faço tudo pela internet e rezo para não quebrar um dente”, disse a VEJA.

Os últimos anos foram especialmente desafiadores para a cantora. Em 2021, ela foi diagnosticada com câncer de pulmão e, de maneira bastante irônica, disse ter batizado o tumor de Jair — referência, claro, ao então presidente Jair Bolsonaro, que encarnava a chegada ao poder do reacionarismo empedernido contra o qual ela se bateu a vida toda. No mesmo ano, Rita inaugurou uma megaexposição da carreira no MIS, em São Paulo e lançou também uma música inédita, Change. No ano passado, foi homenageada no Grammy Latino com o prêmio Lifetime Achievement Award pelo conjunto de sua obra artística.

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