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Supremo, na decisão sobre união civil entre gays, toma o lugar do Congresso Nacional mais uma vez

Por Mirella D'Elia
6 Maio 2011, 06h44

O Supremo Tribunal Federal (STF) avançou, nesta quinta-feira, ao reconhecer que casais do mesmo sexo que vivem juntos – o que, na falta de lei específica, se convencionou chamar de uniões homoafetivas – têm os mesmos direitos que casais heterossexuais que convivem em união estável, o que o ministro-poeta Carlos Ayres Britto, relator das duas ações sobre o tema em pauta, batizou de uniões heteroafetivas. A decisão, unânime, foi no entanto mais abrangente do que precisava ser.

Durante dois dias, o tribunal julgou duas ações. A primeira, proposta pelo governo do Rio de Janeiro, pediu ao tribunal que aplicasse o regime jurídico das uniões estáveis, previsto no artigo 1.723 do Código CIvil e no artigo 226 da Constituição Federal de 1988, às uniões homoafetivas de funcionários públicos do estado. O objetivo: que esses servidores tenham assegurados benefícios como previdência, concessão de assistência médica e licença, por exemplo. O argumento principal do governo do Rio é o de que não reconhecer essas uniões contraria princípios constitucionais como o direito à igualdade e à liberdade, além de ferir o princípio da dignidade da pessoa humana.

A segunda ação, apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), tinha caráter mais amplo: além de reconhecer os direitos civis de pessoas do mesmo sexo em todo o país, pediu ao Supremo para declarar que uma união entre pessoas do mesmo sexo é uma entidade familiar. Os fundamentos utilizados foram basicamente os mesmos da outra ação, com um argumento adicional: reconhecida a união estável como entidade familiar fica assegurada a segurança jurídica do casal.

Se tivesse acatado apenas a primeira ação, a decisão do Supremo teria sido irretocável. Em diversos estados, decisões proferidas por magistrados de instâncias inferiores já asseguram, há pelo menos 25 anos, benefícios civis a casais do mesmo sexo – 1.026 decisões, segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM). Isso sem contar os processos que ainda estão correndo e ainda não tiveram qualquer tipo de julgamento. Mas, até agora, predominava o entendimento de cada juiz. Faltava, pois, a palavra da Suprema Corte para sanar dúvidas e pôr fim à insegurança jurídica. Segundo o mesmo IBDFAM, a indefinição faz com que, atualmente, os casais do mesmo sexo deixem de ter assegurados mais de de uma centena de direitos, como pensão por morte ou alimentícia, herança e declaração compartilhada do Imposto de Renda (IR), entre outros. Agora não mais – direitos iguais para todos.

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O Supremo, no entanto, acatou também o pleito da PGR. Os argumentos usados no plenário não têm nada de absurdo. Eles têm a ver com princípios fundamentais da Constituição, como a dignidade da pessoa humana, o direito à liberdade e à igualdade, e ainda a vedação a qualquer tipo de preconceito. “O sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se expressa como fator de desigualação jurídica”, disse o ministro Ayres Britto, relator da ação. “Reitero que todas as formas de preconceito merecem repúdio de todas as pessoas que se comprometam com a democracia. Contra todas as formas de preconceito, há o direito constitucional”, declarou a ministra Cármen Lúcia. E o novato Luiz Fux lhe fez coro: “O homossexualismo é um traço da personalidade. Não é crime. Então, por que o homossexual não pode constituir uma família? Por força de duas questões abominadas pela Constituição Federal: a intolerância e o preconceito.”

Entidade familiar – O problema é que, ao estabelecer que um casal homossexual constitui família, o Supremo fez mais do que interpretar a lei. Ele literalmente a reescreveu, uma vez que a Constituição Federal e o Código Civil são explícitos ao definir a “entidade famíliar” como algo que nasce da união entre homem e mulher. A rigor, não existe o “silêncio constitucional” mencionado várias vezes pelos ministros.

Essa nova definição de família tem consequências que vão além de permitir que dois homens que vivem juntos por exemplo, possam compartilhar um plano de saúde ou fazer declaração conjunta de Imposto de Renda. Como os ministros do Supremo não criaram nenhum limite para a aplicação da sentença (e, à certa altura, correu a informação de que fariam isso na hora da proclamação), abriu-se a porta para que casais do mesmo sexo possam adotar filhos ou pleitear que seu relacionamento seja convertido em casamento, como podem fazer hoje em dia os casais em “união estável”.

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Essas são decorrências lógicas do que foi decidido, e será muito difícil ao STF decidir de maneira contrária caso uma ação sobre esses temas chegue a ele. “Esse tipo de decisão gera muitas consequências. Não temos a capacidade de prever todas as relações concretas que demandam a aplicabilidade da nossa decisão. Vamos deixar isso para o caso a caso, nas instâncias comuns”, disse Ayres Britto.

O conceito de família que consta das leis brasileiras deveria, de fato, ser mudado para que pessoas do mesmo sexo possam se enquadrar nele. Mas, por mexer com temas tão delicados quanto a adoção, esse é o tipo de debate que deveria ser conduzido no Congresso – se o Congresso não houvesse aberto mão de discutir os assuntos que de fato dizem respeito à vida do brasileiro. A omissão do Congresso abre caminho para o “ativismo” do Supremo, e essa não é a melhor forma para o jogo entre os poderes. Por definição, cabe ao Legislativo propor leis e, ao STF, atuar como guardião do ordenamento jurídico.

Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes criticou a inércia de deputados e senadores. Disse que, enquanto não há lei para isso, a decisão da corte garante proteção jurídica a casais do mesmo sexo: “O que se pede é um modelo mínimo de proteção institucional para evitar a discriminação. Essa proteção deveria ser feita pelo próprio Congresso Nacional”, disse. “O limbo jurídico contribui para que haja um quadro de maior discriminação e para as práticas violentas que de vez em quando temos notícia em relação a essa pessoas. Práticas lamentáveis, mas que ocorrem”.

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“Nós agimos porque vocês não fizeram nada”: na essência, foi isso o que disse Gilmar Mendes. Mas havia um caminho intermediário – uma sentença mais contida, que equiparasse os casais gays e os casais heterossexuais em união estável apenas para as questões patrimoniais, teria sido o melhor resultado no julgamento de hoje. Seria um passo adiante na questão da igualdade social e da luta contra os preconceitos, com enormes consequências práticas, e um passo atrás – igualmente bem vindo – no avanço do Judiciário sobre um terreno que deveria pertencer ao Legislativo.

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