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Macron e a briga pela reforma da Previdência: ou vai ou racha

Chega à Assembleia o projeto do presidente francês — sua aposta para reverter protestos e recuperar a popularidade

Por Caio Mattos Atualizado em 21 fev 2020, 10h09 - Publicado em 21 fev 2020, 06h00

Desde que se alojou nas dependências do palácio Élysée, há três anos, Emmanuel Macron nunca escondeu a pretensão de dar um salto mais alto do que a Presidência da França: ele quer se fincar na posição de líder de fato da União Europeia. Fora de casa, o espaço lhe vem sendo facilitado pelas circunstâncias. A chanceler alemã Angela Merkel, que hoje ocupa a função não oficial de dar a última palavra nos assuntos europeus, já avisou que vai se afastar da política em 2021. O Brexit, por sua vez, tirou do tabuleiro o outro candidato à vaga, o premiê do Reino Unido, Boris Johnson. Se os ventos sopram a favor no exterior, no front doméstico a vida de Macron está difícil.

Primeiro foram as marchas dos “coletes amarelos”, que há mais de um ano tumultuam os sábados na França com manifestações contra a indiferença da elite e das metrópoles aos problemas do desalentado interior do país. Agora são os poderosos sindicatos franceses que, desde dezembro, promovem greves e protestos contra a reforma da Previdência, promessa de campanha de Macron que entra na reta final. Na segunda-feira 17, a Assembleia Nacional iniciou os debates sobre a proposta, um longo processo que, se terminar em fracasso do governo, poderá sepultar os grandes planos de Manu, como ele é chamado.

O partido de Macron, o centrista Em Marcha!, tem confortável maioria na Assembleia, mas há deputados que temem o efeito do voto “sim” em seu eleitorado. Paralelamente, os ruidosos partidos de esquerda prometem fazer de tudo para adiar enquanto puderem a votação. Não estão brincando: apresentaram mais de 36 000 emendas até agora. O governo trabalha com um prazo até junho para finalizar o debate no Legislativo. No limite, Macron terá de aprovar a reforma por decreto, com o inapelável desgaste que isso acarretará. Na quinta-feira 20, cerca de 100 000 pessoas participaram de mais uma manifestação contra a mudança no antiquíssimo sistema de pensões, ocupando os bulevares parisienses, tomados de lixo — o serviço municipal de limpeza pública está em greve desde 23 de janeiro. Antes disso, os ferroviários desarranjaram horários de trens e metrôs com greves intermitentes durante 48 dias. Encostado na parede, Macron vê sua popularidade desmoronar — pesquisa de janeiro mostra que 70% dos eleitores não acreditam que ele vá se reeleger. “Culturalmente, a França é um país de revolucionários. Provocada, a população vai às ruas”, diz Yannick Chatelain, da Escola de Administração de Grenoble.

A exposição das insatisfações dos franceses não ajuda em nada a posição do partido do governo na eleição para prefeito de Paris, em 15 de março, já depauperada pelo escândalo que há duas semanas derrubou seu candidato, Benjamin Griveaux — um apimentado enredo que mistura vídeo de conteúdo sexual a espionagem russa e, naturalmente, hipnotiza a nação e alimenta o noticiário. Griveaux não estava liderando as pesquisas — a atual prefeita, a socialista Anne Hidalgo, deve se reeleger —, mas o provável mau resultado de sua substituta, a ex-ministra da Saúde Agnès Buzyn, ferrenha defensora da reforma da Previdência, deve respingar no presidente.

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Macron foi eleito com mais de 65% dos votos em 2017 cultivando a imagem de candidato alijado da velha política, jovem e arrojado. Propunha “modernizar” a economia com desregulamentações e a reforma previdenciária. Desde o início, contudo, bateu de frente com os sindicatos, refratários a medidas que permitiram contratos de trabalho de curta duração e facilitaram a negociação de acordos diretamente entre patrões e empregados. Ex-banqueiro inexperiente no contato com o público, Macron reagiu com empáfia e indiferença aos que se opunham a ele. Assim foi ganhando fama de presidente das elites e dos poderosos e minando as chances de aceitação de uma reforma que mexe no bolso de boa parte da população. A França tem 42 regimes previdenciários, que regem as pensões de 17 milhões de aposentados. Nesse conjunto, apenas um, o geral, contempla 14 milhões de pensionistas do setor privado. Os outros onze, voltados para o funcionalismo público, embutem uma série de privilégios para 1 milhão de beneficiados.

O pagamento de pensões consome 25% do Orçamento do governo, situação até confortável se comparada aos 47% do Brasil. Só que a população envelhece rapidamente e as projeções mostram que o déficit previdenciário, de 2,9 bilhões de euros em 2018, saltará para impensáveis 113 bilhões de euros até 2030. A proposta do governo unifica os 42 regimes em um “sistema universal”, com todas as aposentadorias contabilizadas com base nas horas trabalhadas. Para os sindicalistas, a medida equipara Macron à primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, a destruidora de direitos trabalhistas que, com medidas ultraliberais, fulminou a influência dos sindicatos nos anos 1980.

Macron já fez concessões a caminhoneiros e ferroviários e, em outro recuo, removeu do projeto o aumento gradual da idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos até 2027. Taticamente, ele tira proveito de um efeito colateral da prolongada greve de transportes: depois que ela acabou, 45% da população declarou em uma pesquisa não confiar nos sindicatos. “O resultado da paralisação foi praticamente nulo, e eles se enfraqueceram”, avalia Bertrand Badie, cientista político da Universidade Sciences Po, de Paris. Mesmo assim, Macron continuará tendo de negociar muito ainda para aprovar sua reforma. Se conseguir, será uma vitória para um governo acuado de todos os lados. Se tiver de impor mudanças por decreto, verá seu sonho de liderança, nacional e europeia, desandar como um suflê mal assado. Como se pode observar, no Brasil ou lá fora, não é fácil lutar contra as corporações.

Publicado em VEJA de 26 de fevereiro de 2020, edição nº 2675

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