A grife californiana de acessórios e roupas íntimas femininas Victoria’s Secret alcançou nas últimas décadas alguns dos feitos mais notáveis da história da indústria da moda. Em 1997, transformou uma ideia casual — pendurar asas nas costas das modelos — em um símbolo inquestionável de beleza. Em 2000, assombrou o mundo com um sutiã de 15 milhões de dólares cravejado de 1 300 pedras preciosas. A peça, exibida nas passarelas pela modelo Gisele Bündchen, foi parar no Guinness Book: é a lingerie mais cara de todos os tempos. Em 2001, surpreendeu novamente ao ter os seus desfiles transmitidos ao vivo pela TV americana. Mais inesperada ainda foi a audiência desses eventos, que chegaram a cativar 12,4 milhões de telespectadores. Nos anos seguintes, ela se tornaria não apenas uma das principais referências da moda, sinônimo ao mesmo tempo de beleza e sofisticação, mas também uma máquina de fazer dinheiro. “A Victoria’s Secret foi, sob diversos aspectos, um dos mitos empresariais de nosso tempo”, diz Eduardo Tancinsky, consultor especializado em marcas.
O encanto parece ter ficado para trás. Há alguns dias, o braço britânico da empresa anunciou o pedido de proteção contra credores. No Reino Unido, esse é o passo anterior à falência. Não se trata de um problema isolado ou pontual. A marca informou ainda que fechará permanentemente 250 lojas nos Estados Unidos e Canadá e as operações na China começaram a ser revistas. Segundo o consultor Eduardo Tancinsky, estima-se que, somente em território americano, sua participação no mercado de lingerie tenha caído de 34% uma década atrás para 15% atualmente. Com vendas em queda desde 2016 — a previsão é um recuo de 3% em 2020 —, a grife amarga uma série de prejuízos. No terceiro trimestre de 2019, de acordo com os mais recentes dados disponíveis, as perdas chegaram a 252 milhões de dólares, e já há quem questione a capacidade de a companhia sobreviver em um cenário marcado pela pandemia do coronavírus, por consumidores receosos e pelas incertezas sobre a velocidade de recuperação da economia.
O que teria levado a Victoria’s Secret a ser hoje apenas uma sombra do que foi no passado? Diversas razões explicam o declínio, mas uma em especial chama atenção. De certa forma, ela tem sido vítima daquilo que a consagrou. A grife que encantou homens e mulheres e conquistou admiradores em diversas partes do planeta pela estética notadamente sexualizada — modelos lindas e esguias — parece fora de contexto em um mundo marcado pelo ativismo feminino. “Isso funcionava nos anos 1990, especialmente quando homens compravam lingerie para as mulheres”, diz Jean-Pierre Dubé, professor de marketing na University of Chicago Booth School of Business. “Agora as mulheres querem influenciar a forma como são percebidas, e a imagem de supermodelo da Victoria’s Secret não parece mais natural ou consistente.” Em outras palavras: a empresa não foi capaz de entender as mudanças da sociedade ou o próprio espírito do tempo.
Um episódio exemplifica a desconexão da Victoria’s Secret com a realidade. No ano passado, Ed Razek, diretor de marketing da grife, disse em entrevista à revista Vogue que a marca não deveria lançar modelos plus size. Como era de esperar, a declaração revelou-se desastrosa. Em meio a uma onda de protestos, mulheres de corpo curvilíneo vestindo apenas lingerie se posicionaram diante das lojas para gritar palavras de ordem — Razek foi obrigado a se desculpar, mas isso não acalmou as manifestantes. Ele acabou pedindo demissão, mas os estragos na reputação da empresa já estavam feitos. “A Victoria’s Secret teve dificuldade para entender as novas perspectivas da sociedade sobre os papéis dos gêneros humanos e a sua importância no mercado da moda”, afirma Rodrigo Leão, publicitário e professor de gestão de marcas na Fundação Instituto de Administração (Fia). “Ela manteve as consumidoras no papel de objetos quando elas próprias já não reconheciam essa postura como socialmente apropriada.”
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Clique e AssineO ano de 2020 da grife tem sido marcado pela tentativa de se reinventar. Modelos menos esguias foram contratadas, campanhas de publicidade em defesa da diversidade ganharam as TVs dos Estados Unidos e Canadá e até um remanejamento societário, com o ingresso de novos acionistas, foi planejado na esperança desesperada de virar o jogo. Até agora, nada funcionou e há um enorme ponto de interrogação posto diante do futuro da marca. “A grande questão é que estamos vivendo em um mundo de grandes rupturas, onde não existem verdades absolutas”, diz Cláudio Tomanini, ex-professor de gestão de vendas e marketing da Fundação Getulio Vargas. “Por isso, a empresa deve estar preparada para destruir mitos, defender novas ideias e desafiar as crenças que a levaram ao topo, mas que não a manterão mais lá.”
Não são raras as companhias que, fustigadas pelo tempo ou incapazes de entender o novo mundo, deixaram de ser relevantes. A americana Blockbuster levou vinte anos para se tornar um império global com bilhões de dólares em faturamento, mas desabou em pouco tempo ao não perceber que o caminho seria o streaming — e sumiu por completo depois de a Netflix tomar a dianteira nesse mercado. Se a Victoria’s Secret é um caso clássico de empresa colocada contra a parede graças a mudanças profundas na sociedade, há inúmeras corporações que foram açoitadas pela inovação tecnológica. Um dos exemplos mais visíveis é a americana Kodak, que foi incapaz de perceber que os filmes fotográficos seriam peça de museu diante do avanço avassalador das imagens digitais. Nos últimos anos, a Kodak tem vivido uma agonia sem fim, tentando enveredar por áreas pouco afeitas ao seu negócio original, como a fabricação de impressoras comerciais e domésticas.
Mudar a trajetória de uma empresa pode ser um processo longo e doloroso. A americana IBM dominou o mundo dos computadores durante décadas, mas quase desapareceu quando concorrentes como Apple e Dell começaram a ocupar esse espaço. Por um bom tempo, a IBM investiu em serviços de tecnologia e, agora, invade o mundo da inteligência artificial, em constante processo de reinvenção. A própria Microsoft experimentou o veneno que a fez destroçar rivais. Criada em 1975 por Bill Gates e Paul Allen, levou menos de dez anos para se tornar um predador internacional graças principalmente ao Windows, o sistema operacional que mudaria para sempre a história da computação. A Microsoft cresceu produzindo softwares para computadores, mas sofreu com o advento de tablets e smartphones, que derrubaram consideravelmente os seus lucros. Ágil como uma empresa de tecnologia deve ser, percebeu que deveria buscar novas frentes de negócios e acabou por entrar no universo de hardwares. Além disso, revigorou o seu serviço de e-mail, substituindo o insosso Hotmail pelo ágil Outlook. Em pouco tempo, voltou a lançar tendências, em vez de correr atrás das rivais.
Em 1942, o economista austríaco Joseph Schumpeter criou a expressão “destruição criativa” para definir a necessidade de grandes empresas se reinventarem permanentemente. De tempos em tempos, diz ele, é preciso “derrubar os pilares do passado para construir as pontes do futuro”. Isso nem sempre é fácil, mas em geral vai estabelecer as chances de sobrevivência de uma corporação. A Victoria’s Secret não fez a lição de casa — longe disso. Cega pelo sucesso estonteante alcançado nos primeiros anos do século XXI, nem sequer percebeu que deveria investir em iniciativas corriqueiras hoje em dia, como serviços digitais (foi apenas há pouco tempo que entrou no comércio eletrônico) e ambientes mais despojados nas lojas — elas, ao contrário, continuaram exatamente como nos anos 1990, com suas madeiras pesadas, cortinas de seda e tapetes orientais, um glamour artificial distante das novas gerações, que valorizam especialmente a autenticidade. Para piorar, enfrenta agora a concorrência de marcas de lingerie mais inclusivas e que carregam a vantagem adicional de ter nascido em plena era digital. Enquanto não espantarem seus demônios, os anjos da Victoria’s Secret estarão em sério risco de extinção, de asas quebradas.
Publicado em VEJA de 17 de junho de 2020, edição nº 2691