A proposta é boa: uma jovem médica de classe alta se envolve com drogas e vê a vida virar de ponta cabeça por causa do vício. O enredo de Onde Está Meu Coração, minissérie que chegou ao Globoplay no início do mês, é terreno fértil para as séries médicas, e não à toa: segundo um estudo feito em 2013 pelo Journal of Addiction Medicine, 69% da classe já abusou de substâncias prescritas para “aliviar o stress de dores físicas e emocionais”. O grande vilão é o opioide, substância presente em remédios como a Oxicodona, vício da neurocirurgiã Amelia Shepherd, em Grey’s Anatomy, e do Dr. Evandro, na brasileira Sob Pressão, e o Vicodin, narcótico usado por House em Dr. House.
Na trama protagonizada por Letícia Colin, em uma interpretação primorosa e de rara intensidade, o veneno que a leva ao fundo do poço é outro: Amanda, sua personagem, é introduzida ao crack pelo namorado Miguel (Daniel de Oliveira), que optou por experimentar a substância. O arquiteto não fica viciado, mas a namorada, que tem histórico de dependência na família, não teve a mesma sorte. Logo no primeiro episódio, transmitido pela Globo na TV aberta, a jovem revela os terrores da recaída, levando seus pais e o marido a optarem por interná-la compulsoriamente. Com bons atores e uma fotografia que transmitia de forma poética as dores da família, a minissérie se mostrou ali bastante promissora — pena que acabou, como muitas minisséries da Globo, enveredando para os clichês folhetinescos e perdendo assim sua aparente originalidade.
Nas tramas secundárias da minissérie estão elementos típicos do DNA do horário nobre, como a dualidade entre a irmã certinha e a problemática, o apego do brasileiro pela religiosidade e promessas, muito presente na recém finalizada Amor de Mãe, na figura de Dona Lourdes (Regina Casé), e a obsessão de uma mulher poderosa por um homem apaixonado por outra — relação que se repete exaustivamente em vários títulos globais.
Em um país em que as novelas são campeãs absolutas de audiência, não há demérito algum na comparação, não fosse o fato de que a minissérie escorrega no formato para soar superficial. Ao contrário das tramas televisivas, que passam meses, e até anos no ar, com espaço de tela suficiente para o desenvolvimento de vários núcleos, uma produção de dez episódios tem suas limitações. O principal desafio é contar a história de personagens secundários de maneira aprofundada, ao mesmo tempo em que se dá o devido foco à protagonista — e é justamente aí que a produção falha: Amanda se torna apenas mais uma peça em um mar de excessos melodramáticos.
Vivian (Camila Márdila), por exemplo, é apresentada como uma mulher poderosa e independente, mas logo se mostra obcecada por Miguel, e é resumida ao papel de pivô de conflitos no relacionamento do arquiteto com Amanda, para complicar ainda mais a vida da protagonista. A morte de Davizinho, o caçula da família, também entra nesse limbo: o menino faleceu ainda criança em um acidente doméstico que Júlia (Manu Morelli), a irmã do meio, diz ser culpa de Amanda. O que realmente aconteceu fica no ar, diluído entre flashbacks que pouco acrescentam na construção psicológica da protagonista e alfinetadas da irmã nada cativante, que tem a sua própria narrativa também escanteada: depois da morte da criança, ela pediu a Deus que curasse sua família e, em troca, se casaria virgem. A relação com a religião se restringe ao conflito entre quebrar ou não a promessa, que em nada acrescenta na relação das irmãs, muito menos conquista por si só.
A falta de foco do roteiro, porém (e ainda bem), não consegue ofuscar o talento e versatilidade de Letícia Colin, capaz de entregar desde o drama de alguém que luta contra um vício até o humor da trama de Cine Holliúdy, outra minissérie de sucesso que conta com a atriz entre os protagonistas. A relação de Amanda com a mãe Sofia (Mariana Lima) é outro ponto alto, capaz de despertar empatia pelo sofrimento materno — mais até do que o aguardado desempenho de Fábio Assunção, ele mesmo um dependente em recuperação, no papel de David, o pai da moça. Talvez o próprio e o desenvolvimento de seu personagem tenham sido prejudicados pelo espaço gasto com coadjuvantes desnecessários. Fica então o alerta: às vezes uma única (e boa) história é mais que o suficiente para uma boa série.