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Política na cozinha: acadêmico de esquerda detona culinária italiana

Disposto a causar, professor de história da comida passa o trator em parmesão, panetone, carbonara e outros instituições sagradas

Por Vilma Gryzinski 31 mar 2023, 07h36

Se o mundo se tornou emburrecidamente compartimentalizado entre direita e esquerda até nos encontros sem compromisso propiciados pelo Tinder, como a culinária poderia escapar?

Não se depender de Alberto Grandi, professor de história da comida na Universidade de Parma e autor de um livro que está deixando muitos especialistas italianos — ou seja, toda a população — à beira de um ataque de nervos.

O livro tem um título genial: Denominação de Origem Inventada. Só por aí já dá para concluir quem é seu inspirador, Eric Hobsbawn, o historiador brilhante e comunista autoenganado que escreveu uma coleção de ensaios chamada Tradições Inventadas.

Emulando Hobsbawn, em escala muito menor, evidentemente, Grandi, que se define como marxista, enumera uma coleção de “antigas” tradições culinárias que foram inventadas ontem, em termos históricos.

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A mais escandalosa delas: a pasta carbonara, a deliciosa receita vinda da Itália, capaz de provocar apoplexia nos puristas quando detectam acréscimos como creme de leite e outras genialidades dignas de certos ministérios de Brasília. 

A carbonara não tem nada a ver com carvoeiros nem com os revolucionários carbonários. Foi inventada, segundo Grandi, pelo chef Renato Gualandi em 1944 para um jantar de Harold Macmillan, futuro primeiro-ministro britânico e então ministro Residente no Mediterrâneo, um posto criado na Itália ocupada pelos aliados, e autoridades americanas.

Gualandi fez o que todos os chefs recomendam e aproveitou os melhores produtos disponíveis. Estes vinham das despensas do Exército americano: bacon cremoso (de barriga de porco mesmo, não guanciale, tirado das bochechas, como hoje exigem os tradicionalistas), creme de leite espesso e ovos. O contrário do que dizem os tradicionalistas, que apenas admitem quatro ingredientes para a receita famosa: guanciale, pecorino romano, ovos e pimenta do reino, além, claro, do próprio spaghetti  (NÃO USEM alho, salsinha, cebola, creme de leite, leite, parmesão, pancetta e bacon, avisam em maiúsculas os exasperados tradicionalistas, num alerta que, evidentemente, não vale para os cozinheiros despretensiosos).

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A história do panetone é melhor ainda. Originalmente uma fatia de pão duro com algumas passas, ele foi desenvolvido na forma hoje conhecida pela indústria alimentícia Motta nos anos vinte do século passado, não centenas de anos antes. A trajetória foi invertida: de produto industrial, acabou “adotado” pelas padarias artesanais. “Depois de uma bizarra jornada, tornou-se o que nunca tinha sido: um produto artesanal”, disse Grandi em entrevista ao Financial Times.

Parmesão? Realmente é um maravilhoso produto militar, mas até os anos sessenta, segundo o professor, não era o enorme queijo esférico montado em peças de quarenta quilos. Pesava dez quilos, uma medida preservada pelos imigrantes italianos que foram para o estado americano de Wisconsin, provoca Grandi.

Pizzarias também são originárias nos Estados Unidos — Madonna Mia! Na Itália, os “discos de massa com coberturas em cima” eram comida de rua em algumas cidades do Sul.

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E o tiramisu não nasceu num bordel de Treviso no século XIX. Seu principal ingrediente, o delicioso mascarpone, não era encontrado fora de Milão antes dos anos sessenta e o biscoito molhado em café que divide as camadas é da marca Pavesini, um produto lançado em supermercados em 1948.

“Num país, normal, ninguém ligaria para onde e quando um doce foi inventado”, brinca Grandi, sabendo muito bem que isso pode dar até briga de faca na França. E nem pensar em “simplificar” a receita de um bolo de rolo.

Mas o recado de Grandi tem um endereço mais específico: políticos de direita que estão no poder, como Matteo Salvini, que vive comendo coisas — deliciosas — e defendendo as tradições italianas.

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A primeira-ministra Giorgia Meloni, a melhor surpresa da direita em muito tempo (toque, toque, nunca se sabe se vai durar), fez um vídeo de campanha com uma nonna mostrando como selar os “pasteizinhos” numa receita de tortellini, para que não abram durante o cozimento. 

Mais recentemente, o ministro da Agricultura e Segurança Alimentar, Francesco Lollobrigida (sobrinho-neto de Gina, a recentemente falecida atriz que epitomizou a beleza curvilínea italiana, e cunhado de Giorgia), se expôs ao ridículo universal ao defender inspeções em escala global em restaurantes italianos para se certificar que não estão abusando do nome.

Quem ele colocaria para fazer a inspeção, capacetes azuis da ONU?

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“Está tudo ligado à identidade. Quando uma comunidade se vê privada de seu senso de identidade, por uma fratura ou um choque histórico com seu passado, inventa tradições que funcionam como mitos fundadores”, disse Grandi na entrevista ao Financial Times, repetindo quase que literalmente seu ídolo, Eric Hobsbawn.

O mais conhecido exemplo citado por Hobsbawn de tradição inventada é o tartan, a lã xadrez que no imaginário escocês remonta à época dos clãs de Highlanders da história original do país, mas foi inventado no século XIX.

Hobsbawm foi um historiador maravilhoso e de grande sucesso (e um comunista atroz, que entrou no Partido em 1936 e só saiu cinquenta anos depois, depois de todas as conhecidas atrocidades, vivendo o suficiente para ver o desmanche da sociedade que idealizou), a ser lido com um bom entendimento do contexto das convicções políticas que o moviam. 

Alberto Grandi não chega nem perto dessa grandeza. Mas trata de um assunto sobre o qual todo mundo tem uma opinião. A comida e a cultura da comida podem ser um dos fios condutores da história humana. Um carbonara tem muito mais importância, e universalidade, do que um kilt escocês. As reações ao livro de Grandi mostram isso. Ao desconstruir tantas tradições — ou mitos —, ele está ajudando a mantê-las mais vivas do que nunca.

E quem sabe um dia seja convidado para conhecer nossas comidas italianas da imigração (muito melhor adaptadas do que nos Estados Unidos)? Um capeletti in brodo feito com uma boa galinha caipira, com salsinha colhida na hora por cima e sabem os deuses da cozinha mais o quê? Se os italianos levaram de nós, das Américas, o tomate do bolonhesa, a batata do gnocchi, o milho da polenta, o feijão da minestra e o chocolate aspergido por cima do tiramisu, nós podemos turbinar as tradições inventadas ontem. 

Se a Giorgia Meloni também for convidada, será uma conversa daquelas.

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