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Marcos Emílio Gomes

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A coluna trata de desigualdade, com destaque para casos em que as prioridades na defesa dos mais ricos e mais fortes acabam abrigadas na legislação, na prática dos tribunais e nas tradições culturais
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Bolsonaro, Lula, Doria, Ciro, Huck e o tema da desigualdade

O maior problema brasileiro não tem abordagens razoáveis. Quem o reconhece, ignora o tamanho do cofre, o funcionamento da economia ou o jogo democrático

Por Marcos Emílio Gomes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 11 mar 2021, 14h13 - Publicado em 9 mar 2021, 11h14
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  • O Brasil não tem saída se a prioridade do próximo presidente não for a redução da desigualdade.

    Aproveitando as novas e possivelmente logo superadas notícias quanto às candidaturas presidenciais, neste país em que até sentença com trânsito em julgado tem caráter provisório, vale analisar, entre os que se apresentam ou são apresentados como competências disponíveis para a função, o que cada um tem a oferecer nesse quesito?

    Dos mais visíveis para os que, ao menos por enquanto, correspondem a improbabilidades estatísticas:

    Jair Bolsonaro: o tema não era ponto específico de seu programa na última eleição e, na próxima, tende a misturar-se de novo com ações de caridade e combate a políticas de equidade (caso único talvez no universo), agora com índice maior de tempero evangélico.

    No mandato em curso, ações relacionadas, como criação de um programa mais amplo do que o Bolsa Família, foram atropeladas pela necessidade de ação emergencial na pandemia.

    O mais relevante, porém, é a perversidade embutida em estratégias que, em nenhum dos projetos cogitados ao longo do governo, antes ou depois do coronavírus, consideraram a busca de recursos em fontes que já não estejam comprometidas com ações sociais.

    Para o ministro Paulo Guedes, só se admite remanejar dinheiro da saúde, da educação, do Fundo de Auxílio ao Trabalhador, dos benefícios sociais e, mais recentemente, do Fundo de Garantia, para financiar o combate à desigualdade.

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    Guedes continua acreditando, como o regime militar acreditou, que o bolo deve crescer primeiro para depois ser repartido, na forma de empregos; mas só consegue enxergar a possibilidade de estimular a criação de novas vagas cortando direitos trabalhistas – o que significa reduzir ainda mais a renda ou os alívios sobre ela disponíveis para o trabalhador.

    Aquilo que o bolo já cresceu entre os privilegiados que concentram renda é intocável.

    Se seguir com o ministro, Bolsonaro terá, por outro lado, pelo menos um freio, de pé leve, na tentação populista de queimar reservas para comprar votos.

    Mas, num eventual segundo mandato, a tentação de fazer o sucessor pode piorar bem as coisas.

    Lula (ou Haddad, nunca se sabe): O ex-presidente livrou-se da tornozeleira política e, a depender de novos julgamentos, é o nome mais forte da próxima eleição. Haddad tende a ser seu preposto na hipótese do impedimento.

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    Os petistas frequentemente destacam o fato de que, em seus dois primeiros governos, milhões de brasileiros ultrapassaram a linha da pobreza, mas o fato de que a maioria voltou para a antiga condição, boa parte ainda sob a gestão de Dilma Rousseff, mostra a inconsistência e fragilidade das políticas desenvolvidas naquele período.

    Na prática, essa situação demonstra o quanto a dificuldade ou o desinteresse em institucionalizar políticas sociais tornam o ambiente favorável a arroubos populistas.

    Quando as condições econômicas são favoráveis, é possível desenvolver mecanismos que facilitam o avanço de alguns degraus econômicos para os menos favorecidos, mas, na outra ponta, a proporção na distribuição de renda não se altera e são, por fim, os miseráveis os que acabam pagando a conta de qualquer nova retração.

    Nem a exigência constitucional de indicação de fonte para todo tipo de despesa nova garante a perenidade dos benefícios e dos estímulos ao aumento de renda entre os mais pobres.

    Determinadas ações, por sinal, funcionam como um tiro no pé, como pode acontecer, por exemplo, com o Fies – o financiamento educacional –, que, num cenário desfavorável, inunda o mercado de profissionais endividados e não necessariamente demandados pela realidade do mercado de trabalho.

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    No governo Lula, a expansão do Fies favoreceu largamente o crescimento do mercado para faculdades particulares, com uma incompreensível atomização de cursos mais adequada ao ensino técnico do que à formação superior.

    Para os que chegaram ao diploma por esse caminho, é indiscutível o ganho educacional e o progresso pessoal conquistado com a permanência de mais anos na escola, mas poucos são os resultados efetivos de qualificação combinada com as carências de mão de obra.

    Para piorar, o desemprego deixa esses egressos das faculdades com uma dívida que pode comprometer ainda mais seus orçamentos ou dos fiadores; ou, quando refinanciada até mesmo sem juros, reduz o caixa do programa, impedindo seu aperfeiçoamento ou determinando novos aportes de dinheiro para manter o fluxo.

    No caso do PT, uma característica curiosa – capaz de assustar o eleitorado – reside no fato de que os programas, pelo discurso dos dirigentes, dependerão sempre da continuidade da gestão petista para perdurar, numa perspectiva que nega a possibilidade de alternância partidária no governo e tende até a trabalhar contra ela, colocando em cheque o próprio conceito de democracia.

    Assim, por mais que Lula ou o candidato que venha a representá-lo apresentem propostas de cunho social baseadas em necessidades reais e eventualmente até efetivas diante do que o país precisa, não se percebe compromisso com a posteridade fora de um projeto de poder permanente.

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    Acrescente-se a essa situação o pendor petista para assimilar equivocadamente alguns conceitos sobre o capitalismo. Recentemente, Lula afirmou numa live que é inadmissível que o criador do software de comunicação Zoom tenha acumulado bilhões com seu programa enquanto tanta gente passa fome.

    A lógica mais rasa indica que, ao contrário, seria ideal ter muitas outras pessoas acumulando bilhões com a criação de produtos necessários para aumentar empregos e arrecadação de impostos, financiando o trabalho social.

    Tolher o capital, fora do caminho regular e necessário dos impostos – estes, sim, em quadro de obsolescência no país de hoje –, é o caminho mais curto da trilha venezuelana do fracasso.

    João Doria: embora a carreira política de João Doria não seja reflexo dos programas eleitorais com que se sustentou para chegar à prefeitura paulistana e ao governo do Estado, sua posição na corrida para 2022 exige considerar o que já disse sobre desigualdade, mesmo sabendo que a conferência é difícil.

    O programa de Doria, como se vê até na gestão dos problemas decorrentes da pandemia, é alcançar a Presidência. E ponto. Reduzido a uma avaliação numérica, o desempenho estadual no combate ao coronavírus tem a mesma proporção de fracassos encontrável nos outros estados.

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    A ação que mais impactaria na redução de contaminações, sobre o transporte público, foco de contaminações, não aconteceu em nenhum momento.

    Teria sido possível – e ainda é – na hipótese de uma decisão emergencial aumentar a disponibilidade de transporte mesmo com a redução da circulação de pessoas, garantindo um mínimo de distanciamento. Mas a ideia custaria caro e nem foi cogitada.

    Nas suas experiências conhecidas na lida com a questão social na capital paulista, quando prefeito, o que se registra são um programa de exclusão social na Cracolândia e uma avaliação de desempenho da Rede Nossa São Paulo no quesito desigualdade na cidade que revela, no mínimo, um ano de gestão perdido.

    Realocado no governo estadual depois de tricotar internamente a cisão partidária, Dória dedica pouco tempo aos problemas do tipo. Envolvido pelo menos por uma moldura de cientistas, politiza a questão sanitária do mesmo modo que Bolsonaro; só que na mão inversa.

    Ao final da campanha mais recente para o Palácio dos Bandeirantes, o jornal O Estado de S.Paulo listou 80 compromissos assumidos pelo governador. A checagem, daqui a algum tempo, vai demonstrar que pouco pôde ser feito.

    A pandemia servirá como boa desculpa, mas o fato é que São Paulo continuará sendo o estado mais rico, e consequentemente também o que, pelos contrastes tão próximos, mostra em lente de aumento o tamanho da desigualdade brasileira.

    Ciro Gomes: o ex-governador do Ceará já foi ministro da Fazenda e da Integração Nacional. Esteve, portanto, na vitrine política um número suficiente de vezes para que o Brasil conheça seu temperamento de baixa adesão à contemporização.

    Esse perfil difícil parece ter tido grande impacto no seu desempenho “mais para ruim do que bom” na eleição de 2018, quando, em terceiro lugar, acabou lavando as mãos quanto à candidatura de Haddad depois de cobrar do PT a autocrítica que sabia que o PT não faria.

    Ciro e Lula se veem disputando uma larga faixa comum do eleitorado e levaram a relação ao ponto esperado nessas circunstâncias. Mas o foco aqui são as propostas relativas à desigualdade.

    Há uma fartura de referências ao tema nas diretrizes que Ciro assinou na campanha passada, mas listada na base de compromissos que tocam levemente em questões cruciais, como impostos maiores para rendas e patrimônios em muito superiores à média nacional, compromissos com programas de cotas e de estímulo ao emprego de qualidade.

    O próprio documento não se classifica como programa, e sim como conjunto de indicativos que viriam a ser discutidos mais amplamente na hipótese de sucesso eleitoral.

    Assim, fica difícil rastrear propostas concretas e oficiais que Ciro teria a apresentar.

    Num artigo publicado recentemente, o candidato apresenta um catecismo de combate à desigualdade que toca os problemas cruciais em impostos, programas sociais, acesso à saúde e à educação, mas arremata com o que chama de má notícia: “Para que isso seja possível, é necessário que o Brasil se desenvolva. E sem o Estado como organizador e indutor da atividade econômica o Brasil nunca se desenvolveu e nunca se desenvolverá”.

    Ou seja, do seu ponto de vista, não será possível trocar a roda com a bicicleta em movimento, o que manteria o país e os miseráveis à mercê de ventos e tempestades no mercado mundial tão certas quanto de data e repercussão imprevisíveis.

    Palavras como pacto, acordo e entendimento, no sentido de negociar e convencer extratos privilegiados quanto à emergência da questão não constam nem das diretrizes nem do artigo de Ciro – o que estabelece, antes ainda de qualquer votação, o rumo mais curto para novas crises no parlamento, na justiça, na mídia e na sociedade.

    Sérgio Moro: na medida em que avançam as investigações sobre a relação entre o juiz e os procuradores na Lava Jato, torna-se claro a estreiteza de horizonte político para Moro, assim como a estreiteza dele mesmo em termos de comportamento na aplicação da justiça.

    Numa das poucas vezes em que abordou o tema da desigualdade, em 2017, o então juiz terminou por elogiar algumas políticas defendidas pelo PT, como as cotas sociais nas universidades e a redução da pobreza, sem considerar, no entanto, as questões relativas à sustentabilidade dos programas ou, no caso das cotas, o impacto localizado e específico.

    As cotas têm um elemento de justiça social e recuperação histórica de desvantagens acumuladas, mas, por si, não encurtam a desigualdade entre privilegiados e destituídos. Desvinculadas de um contexto em que o princípio de redução das diferenças prevaleça, são uma brisa agradável, porém insuficiente para mudar o cenário.

    Nos seus tempos no Judiciário, o fato de receber e defender o auxílio moradia como complemento salarial já dava pistas da miopia de Moro diante de uma sociedade organizada em castas.

    O fato de ter espirrado do governo Bolsonaro não desfaz a constatação de entrou nele conhecendo o capitão e seus antecedentes e concordava com suas prioridades. Sua saída aconteceu pelo confronto de projetos políticos.

    Na esteira do conjunto de suspeições levantadas sobre Lava Jato, Moro passará um bom tempo mais se defendendo do risco de processos do que pensando em projetos para o Brasil, sejam sobre desigualdade ou qualquer outro tema.

    Luciano Huck: o apresentador que se sustenta entre duas candidaturas, a de sucessor do Faustão na TV Globo ou de Fernando Collor na Presidência da República (não, não é um equívoco), terá, no caso de optar pelo segundo caminho, um enorme trabalho para desconstruir sua vida prática e adotar as concepções teóricas às quais aparece vinculado nos últimos meses.

    Huck, como se sabe, vive de quadros televisivos em que a miséria é matéria-prima de audiência, tornou-se investidor celebridade de projetos ambientalmente discutíveis, anuncia supostas vantagens da especulação financeira e surfa na pandemia em campanhas publicitárias que vendem privilégios contestáveis para pequenos comerciantes agoniados com as restrições a seus estabelecimentos ou apelam para cenas sentimentaloides capazes de comparar o confinamento das famílias a confraternizações informais.

    Mais distante da real questão da desigualdade só fica quando é “flagrado” por sites de celebridades a bordo de uma lancha de R$ 30 milhões ou discute sua vida sexual em programas de televisão.

    Qualquer milionário célebre tem legitimidade para se candidatar, mas a inconsistência bate forte quando, nos espaços disponibilizados por veículos que buscam uma vacina dúplice, contra Bolsonaro e Lula, Huck acabe associado a grandes nomes da economia, da sociologia, da ciência e da cultura. (Veja a lista neste post)

    Levado a Davos há um ano, Huck tratou justamente o assunto desigualdade num painel para o qual contribuiu com platitudes e pieguice, sem listar planos, ideias ou projetos de alcance efetivo no combate às distâncias econômicas existentes no país.

    Custodiado pelo ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, o apresentador tem nessa fiança talvez o único cordão a atá-lo de fato à reflexão séria do tema. Só vale lembrar que Bolsonaro tinha um posto Ipiranga (que faliu) em Paulo Guedes assim como Dilma se escorou em Nelson Barbosa para agradar o mercado. No regime brasileiro, quem governa – ou desgoverna – é o presidente.

    Guilherme Boulos: Se existe um Henrique Meirelles a cada eleição, para passar sobre o Brasil um olhar que ignora ruas sem asfalto ou sítios sem energia elétrica, é mais que positiva a contraposição apresentada por um político jovem cuja habilidade retórica está afiada e à espera de aperfeiçoamento na capacidade de articular-se com uma sociedade que vai além do que seus olhos estão enxergando, notadamente depois que o mundo caminhou para a crescente integração econômica.

    Excluídas as consequências de cada uma delas sobre o PIB, a captação de investimentos internacionais, as exportações, a sofisticação dos mercados de consumo e de capitais e a diplomacia, as propostas de Boulos para vencer a questão da desigualdade são generosas e não totalmente irrealizáveis, embora capazes de levar o déficit fiscal a um recorde jamais imaginado.

    Expandidas para o cenário nacional, ideias que apresentou na campanha à prefeitura paulistana, como transporte público e gratuito; desapropriação de imóveis desocupados e cessão de prédios públicos para programas sociais; prioridade zero para a agricultura familiar; e outras da mesma natureza, compõem a mais bonita lista de boas intenções a ser criada numa campanha.

    Falta a esse conjunto de ideias, porém, a lavagem pragmática necessária numa sociedade que é composta por interesses muito mais diversos e na qual, mesmo que seja difícil enxergar, a interdependência econômica entre segmentos sociais tem muitos efeitos positivos, até mais fáceis de destruir.

    Basta pensar sobre a importância dos empregos criados por multinacionais sedentas de lucros, dos impostos pagos nas operações realizadas no mercado financeiro, nos valores arrecadados com o turismo de negócios, na movimentação financeira produzida por grandes eventos, na cadeia de trabalho do marketing de luxo…

    O chamado mercado pode ser a melhor fonte de financiamento da superação da desigualdade, em lugar de seu maior inimigo.

    Marina Silva, Luiz Henrique Mandetta, Eduardo Maia e Eduardo Leite, ainda que cogitados até em pesquisas sobre 2022, são por enquanto cartas encobertas, bem mais admissíveis como nomes eventuais para candidaturas a vice-presidente, na mesma condição de Ronaldo Caiado, Rui Costa, Flavio Dino, Romeu Zema e uma dezena de outros.

    No entanto, considerando a mutabilidade e o nível de realidade líquida do cenário nacional, a abordagem de cada um sobre desigualdade pode tornar-se pertinente em poucos meses. Se for o caso, volta-se ao assunto.

    (Você pode comentar este texto no site Ora Essa!, em ambiente seguro, neste link e também, a partir de agora, seguir a coluna Ora Essa! no Twitter.)

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