Em meio à pandemia e ao enfrentamento ao coronavírus, o que mais se espera é o desenvolvimento rápido de uma vacina, uma cura definitiva para a doença. Pesquisadores costumam responder que a ciência precisa de tempo para avançar e apresentar resultados. Em momentos como o atual, fica evidente a importância do investimento na pesquisa, que precisa de um esforço robusto e contínuo. Há seis anos, não se imaginava que estudos sobre isolamento e confinamento na Antártica, continente de condições extremas de sobrevivência, seriam úteis à sociedade como um todo, que hoje vive diante da incerteza sobre a quarentena. Desde 2014, uma equipe de pesquisadores do Laboratório Fator Humano, vinculado à Universidade Federal de Santa Catarina, estuda os efeitos do continente gelado sobre o corpo humano, principalmente na saúde mental.
Desde o agravamento da pandemia no Brasil, o grupo, coordenado pelo psicólogo Roberto Moraes Cruz, vem adaptando o conhecimento adquirido sobre as reações na Antártica às situações impostas pela quarentena, como o isolamento social e o confinamento dentro de casa. Contudo, para transformar a teoria em aplicação prática, faltam recursos. Confira, a seguir, o relato de Cruz sobre como o trabalho poderia contribuir com os esforços para minimizar os danos causados pela Covid-19.
Qual é o projeto de aplicativo que está pronto para sair do papel? Foi desenvolvida uma metodologia para os estudos na Antártica e a maquete de um aplicativo de apoio para a pesquisa. Estamos agora escrevendo o código do app em parceria com especialistas. Algumas variáveis sobre a saúde mental desenvolvidas para a Antártica são similares à situação da quarentena. Outras não, como a incidência de luz, que é diferente no continente gelado. Ao mesmo tempo, as pessoas confinadas, principalmente em prédios, estão se expondo menos ao sol, indispensável para a produção de vitamina D pelo organismo.
Como ele vai funcionar? Após a pessoa fazer o download e preencher os dados pessoais, ela vai receber as notificações para registrar o que está sentindo e pensando. Ao inserir as respostas, como qualidade de sono, sintomas, entre outros elementos, o aplicativo apresenta os padrões daquele indivíduo, cruzando com dados de outras pessoas para criar mapas de frequência, prevalência e preditores de sintomas de transtornos ou comprometimentos mentais. Essas informações permitem prevenir afastamentos por problemas de saúde mental e até fatalidades. Será possível separar o pessoal da linha de frente, do atendimento médico, que precisa de um suporte especializado.
O que mudaria, na prática? O indivíduo que estiver com problemas, com sintomas importantes, já iria para algum tratamento psicológico e não precisaria ser afastado, no caso de um comprometimento mental leve. Saberíamos quais foram os sintomas que mostraram que ele teria aquele sofrimento para antecipar quando outras pessoas podem ter o mesmo diagnóstico. O aplicativo permitiria uma análise preditiva de qual é a chance de o indivíduo entrar em fadiga ou não.
Quais são as similaridades com a Antártica que permitiram aproveitar o estudo no momento atual? Isolamento e confinamento. Há o aumento de estressores como ansiedade, pensamento depressivo e catastrófico, temor pela vida e impulsividade, que é relacionada ao suicídio. Nas cidades e dentro de casa, é uma oportunidade para testar o aplicativo e ampliar a relevância desse produto. Quando teremos outra quarentena? É uma chance única de nos prepararmos, além de validar a tecnologia para outros contextos extremos, como em minas de carvão, plataformas de petróleo e até estações espaciais. Este é um momento para a pesquisa. A última vez que isso aconteceu foi em 1919 e não podemos esperar que aconteça de novo para agir.
Por que é tão difícil conseguir o financiamento? Temos uma cultura de pouco investimento em ciência, tanto em volume, quanto pela alocação dos recursos disponíveis. Cerca de 98% da produção de conhecimentos científicos é financiada com dinheiro público, e a pesquisa é predominantemente feita nas universidades. No Brasil, o baixo envolvimento do setor privado é notório, ao contrário de outros países. Por isso, pesquisadores disputam os editais de financiamento e bolsas. Temos centros e laboratórios de excelência e é difícil de mantê-los sem investimento contínuo. A crise da pandemia da Covid-19 tem revelado a importância do investimento em ciência e das parcerias público-privadas. Há propostas de fomentos para soluções, como a do aplicativo, especialmente para a saúde mental, que pode reduzir os impactos de uma pandemia de efeitos psicossociais negativos diante do cenário de calamidade.
Como foram os últimos anos de expedições à Antártica? Durante os últimos sete anos, fomos o único grupo a fazer pesquisa de base e aplicada sobre fatores psicológicos associados a marcadores biológicos na Antártica. Fomos para lá “de pires na mão”. Até roupas tivemos que pedir emprestado. É como se recebêssemos uma parte do dinheiro somente para chegar ao Chile, de onde partem os navios e os aviões, mas não à Antártica. As Forças Armadas têm nos ajudado, pois a Marinha e a FAB participam da logística e reconhecem a relevância do projeto, voltado à saúde dos militares, mas os recursos são escassos. No ano passado, não participamos de uma etapa da pesquisa por falta de verba. Foi a primeira missão, desde 2014, sem coleta de dados. E sou professor bolsista produtividade pelo CNPq.
O que poderia melhorar? O gerenciamento da pesquisa no Brasil e das fontes de investimento. Há excesso de hierarquia, burocracia e de atravessamentos políticos. Poderíamos estar em campo coletando dados para o aplicativo. Demora para que consigamos apresentar resultados consistentes e com volume de respostas rápido à sociedade, pois perdemos tempo ao buscar alternativas para trabalhar. O ideal seria destinar verbas aos centros e laboratórios de pesquisa, ao invés de depender excessivamente dos editais das agências de fomento.
Como essa mudança auxiliaria na prática? Quem melhor sabe onde empregar o recurso é o pesquisador. Mudar a engrenagem aumentaria a velocidade de produção e daria maior segurança no trabalho dos pesquisadores. No nosso caso, nós não conseguimos concluir o nosso aplicativo por falta de recursos, mas continuamos realizando o nosso trabalho, de maneira autônoma e com muito esforço, com apoio de nossos estudantes e colaboradores, nacionais e internacionais. Há muito investimento pessoal na pesquisa, seja para se deslocar, para pedir ajuda a outros colegas especialistas, para participar de eventos científicos com os nossos alunos, para produzir artigos e livros, no Brasil ou em língua estrangeira. Parodiando Euclides da Cunha, o pesquisador brasileiro é, antes de tudo, um forte.