Em um de seus mais belos livros — Era dos Extremos — O Breve Século XX —, o historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012) circunscreveu aquele tempo entre o início da I Guerra Mundial, em 1914, e a derrocada da União Soviética, em 1991. “Não sabemos o que virá a seguir, nem como será o segundo milênio, embora possamos ter certeza de que ele terá sido moldado pelo Breve Século XX”, escreveu. Não seria exagero dizer, de mãos dadas com a inteligente percepção de Hobsbawm, que 2023 moldará o que teremos em 2024 e nos anos vindouros. Foram doze meses de extremos, de permanente teste de limites da civilização — um período que bebeu do passado recente, sem dúvida, mas, dados os desafios postos agora (uns vencidos, outros longe disso), pavimenta um amanhã instigante. Vale, como frase a ser puxada pela memória, o comentário do filósofo francês Paul Valéry (1871-1945): “O problema do nosso tempo é que o futuro não é mais como era antigamente”.
Um cuidadoso mergulho nos humores de 2023 ilumina o pêndulo de uma temporada mercurial, em que parece ter valido tudo, menos a neutralidade. Um tempo de marcos radicais. O ano começou com a estupidez golpista dos cidadãos de camisa amarela no infame 8 de Janeiro em Brasília. Uma horda de radicais bolsonaristas, incomodados em ver Lula na Presidência, depredou os edifícios da Praça dos Três Poderes. Seria risível, não fosse trágico, na forma de ameaça para a democracia — felizmente debelada e depois levada a julgamento no STF. Do outro lado do mundo, não bastasse o andamento dos ataques da Rússia de Putin contra a Ucrânia, iniciados em 2022, o dia 7 de outubro registrou um outro momento de exacerbação, das fronteiras morais levadas ao precipício. O ataque dos terroristas do Hamas contra Israel, com resposta imediata e virulenta, voltou a incendiar o Oriente Médio e deixou o mundo tenso como havia muito não se via. Parece não haver dúvida: entre uma data e outra, o dia 8 de janeiro no Brasil e 7 de outubro em Israel, teria acontecido um “breve 2023”. Com o olhar estrito, reafirme-se, de Hobsbawm, que nunca apagou o que tinha ocorrido antes de 1914 e que jamais teve a ambição de decretar algum fim da história em 1991, como se grandes eventos fossem capazes de parar a roda das relações entre as nações. Não são.
Um robô de inteligência artificial (IA) como o celebrado ChatGPT e similares — eis aí um outro extremo do ano, a humanidade empurrada para um imenso dilema ético — talvez se referisse aos atentados em Brasília e às bombas na Faixa de Gaza como episódios isolados. Não seria capaz, certamente, de ligar os pontos, de estabelecer relações, de eventualmente apontar causas e efeitos — como faz VEJA nesta edição especial, a última do ano. Seria incapaz, aliás, de enxergar na morte da fã no show da espetacular Taylor Swift um outro beco sem saída — o da irresponsabilidade e ganância dos produtores que dificultaram o acesso à água no Estádio Nilton Santos, no Rio, no calorão de uma primavera quente como nunca. Resultado, reafirme-se com estridência, de outro triste pacote de extremos — o do clima, provocado pela mão suja do ser humano.
Os limites foram estabelecidos, de algum modo foi possível apartá-los, como em Brasília. Em muitos casos, abriu-se uma avenida de medos, como no conflito bélico de Gaza. Em um capítulo específico, o da IA, tudo indica ser apenas o começo da história. E, lá na frente, quando olharmos para 2023, logo identificaremos o primeiro grande big bang de um novo tempo, o da máquina alimentada pelo ser humano, e sabe-se lá aonde chegaremos. Talvez fosse o caso de ficar com o comentário quase ingênuo — mas bonito em sua simplicidade e didatismo — da letra de Alô, Alô, Marciano, de Rita Lee, que morreu em 8 de maio: “Alô, alô, marciano / A coisa tá ficando ruça / Muita patrulha, muita bagunça / O muro começou a pichar / Tem sempre um aiatolá pra atolar / Tá cada vez mais down no high society”. É canção de 1980, imortalizada também pela voz de Elis Regina. Poderia ter sido escrita ontem.
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Publicado em VEJA de 22 de dezembro de 2023, edição nº 2873