Selvageria do 8 de Janeiro ainda causa indignação, quase um ano depois
Autoridades ainda tentam elucidar o que teria se passado naquele domingo trágico, principalmente se havia alguma ação planejada para além do que aconteceu
Parecia um domingo como outro qualquer em Brasília. O recém-empossado presidente Lula estava em São Paulo, Jair Bolsonaro passava uma temporada fora do país, o Congresso entrou em recesso e os ministros do Supremo Tribunal Federal gozavam férias. A aparente calmaria, porém, contrariava alguns sinais captados pelos órgãos de inteligência do governo: havia ônibus aos montes chegando à capital, manifestantes que questionavam o resultado das eleições voltaram a se aglomerar no acampamento erguido havia meses diante do quartel-general do Exército e muitos deles falavam abertamente, em grupos de mensagens e em redes sociais, em tomada de poder e na invasão das sedes do Congresso, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF). Por omissão, negligência ou incompetência, ninguém deu a devida importância aos indícios que poderiam ter evitado a barbárie, o ultraje, o desrespeito, a vergonha e a humilhação que se viu em 8 de janeiro de 2023 — o dia em que as instituições democráticas foram vilipendiadas por uma horda de desatinados. O dia da infâmia.
Quase um ano depois, a memória da selvageria provocada pelos vândalos que invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes ainda causa espanto, tristeza e indignação. Espanto porque é difícil entender como cerca de 5 000 manifestantes conseguiram avançar com tamanha facilidade sobre policiais que estavam alertados sobre o protesto previsto para aquele dia e, principalmente, porque os objetivos eram discutidos abertamente pelos organizadores. Tristeza porque revela o nível de absurdo que a polarização política irracional pode atingir. Indignação porque foi no mínimo constrangedor testemunhar a democracia ser testada aos olhos de todo o planeta por lunáticos que não aceitavam o resultado de uma eleição legítima. No “protesto”, manifestantes quebraram as vidraças, os móveis e obras de arte do Planalto, atearam fogo no plenário do STF, vandalizaram as instalações do Congresso. Riram, se divertiram e comemoraram a destruição. Alguns não sabiam direito por que estavam lá. Outros chegaram dispostos e preparados para a baderna. Juntos, protagonizaram um dos mais degradantes capítulos da história recente.
Quase um ano depois, as autoridades ainda tentam elucidar o que exatamente teria se passado naquele domingo trágico, principalmente se havia alguma ação planejada para além do que aconteceu. A reação foi dura, rápida e eficiente. Lula decretou uma intervenção na segurança pública do Distrito Federal e o STF determinou o afastamento do governador Ibaneis Rocha, além da prisão da cúpula da Polícia Militar. No dia seguinte à quebradeira, quase 2 000 manifestantes estavam presos. Por ordem do ministro Alexandre de Moraes, que conduz no Supremo a investigação, também foi detido o ex-ministro da Justiça Anderson Torres. Trinta manifestantes já foram julgados por crimes como abolição violenta do estado democrático de direito, tentativa de golpe de Estado e associação criminosa armada, e condenados a penas que chegam a dezessete anos de cadeia. A Polícia Federal ainda busca identificar os eventuais financiadores dos ataques. O ex-presidente Jair Bolsonaro e alguns de seus antigos auxiliares são investigados como suspeitos de terem incitado as manifestações. A baderna, suspeita-se, seria parte de um plano golpista para depor o presidente Lula, a partir da desestabilização do governo — plano que, em teoria, contaria com o apoio velado de setores das Forças Armadas, o que ainda carece de comprovação.
Os episódios do dia 8 também deixaram sequelas no governo e na caserna. Num dos momentos mais tensos que se seguiram aos ataques, o comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, entrou em rota de colisão com o governo ao se negar a autorizar a prisão dos manifestantes que estavam acampados no QG. A polícia havia recebido ordens para deter todos os suspeitos ainda na madrugada do dia 9. Depois de posicionar blindados na entrada da área militar, o general ponderou que a incursão realizada à noite poderia terminar em tragédia, já que o local era escuro e os ânimos, àquela altura, estavam acalorados — Lula, naquele momento, acabou concordando com a decisão. Mas o gesto, somado a outras decisões do comandante, foi considerado um ato de insubordinação. O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Marco Gonçalves Dias, também perdeu o posto. Imagens registradas pelas câmeras de segurança do Palácio do Planalto mostraram G. Dias conduzindo de maneira cordial os manifestantes que invadiram o prédio. O procedimento deu margem a insinuações de que o general estaria sendo conivente com os vândalos e à teoria lunática levantada pelos oposicionistas de que o governo teria estimulado os ataques. Ex-chefe da equipe de segurança do presidente Lula, o militar acabou impelido a pedir demissão. Há várias lições deixadas pelo fatídico dia 8 de janeiro. Uma delas é que a estupidez não pode ser subestimada.
Publicado em VEJA de 22 de dezembro de 2023, edição nº 2873