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Como ela expurgou uma agressão na infância

Tatiane Lima, finalista do Prêmio VEJA-se na categoria Políticas Públicas, criou uma campanha para combater o assédio no transporte público em São Paulo

Por Eduardo Burckhardt
Atualizado em 30 nov 2018, 20h38 - Publicado em 12 out 2018, 07h00

Um calafrio percorreu o corpo da menina ao perceber o que estava acontecendo. Desejou não ter entrado naquele ônibus, no qual, todos os dias, fazia o trajeto da escola pública até sua casa. Ela ficou paralisada diante do homem que se aproximou e, indiferente aos seus tenros 11 anos, começou a se esfregar nela sem conter a excitação. A primeira reação da estudante foi procurar em si própria a causa do assédio. Camiseta escolar, calça jeans e tênis não configuravam um modelito provocante, constatou. Silenciosamente buscou auxílio nas pessoas em volta, mas todas desviaram o olhar. Sem alternativa, desceu correndo no próximo ponto, rezando para que o assediador não a seguisse. Por quase três décadas, a juíza Tatiane Moreira Lima, hoje com 39 anos, deixou escondida na memória essa lembrança da infância. Só conseguiu expurgá-la quando a usou como inspiração para criar, em 2017, a campanha Juntos Podemos Parar o Abuso Sexual nos Transportes, uma força-tarefa que reuniu dezesseis instituições no combate ao assédio em ônibus e trens na cidade de São Paulo — e que lhe garantiu o posto entre os finalistas do Prêmio VEJA-se na categoria Políticas Públicas.

A experiência vivida por Tatiane no tempo da escola, em Campinas, ainda é uma violenta rotina no cotidiano das mulheres. Em uma pesquisa desenvolvida pelo instituto YouGov em 2016, 86% das entrevistadas no Brasil manifestaram ter sofrido assédio em público. Os meios de transporte estão entre os ambientes mais amedrontadores: 68% delas temem ser importunadas em ônibus e trens. No macrocosmo da capital paulista, com cerca de 7 milhões de pessoas circulando diariamente entre plataformas e vagões, essa tensão se multiplica. “Mas era uma violência invisível, que todos silenciavam ou banalizavam”, diz Tatiane. Até agosto do ano passado, nem sequer havia estatísticas sobre abuso sexual no sistema de ônibus em São Paulo.

Deflagrada em agosto de 2017, a campanha tomou as redes sociais, TVs e os meios de transporte com vídeos e cartazes com frases de efeito. Elas foram formuladas com base no tripé da iniciativa: pôr a atenção no abusador (“Abuso sexual não tem desculpa, tem lei”), ajudar a vítima a denunciar (“Não deixe o medo paralisar você. Rompa o silêncio”) e incentivar as testemunhas a ter voz ativa (“Omissão também é violência”). O desafio principal aconteceu nos bastidores, meses antes de a campanha ganhar as ruas. “Não adiantaria só colar cartazes se, quando a mulher anunciasse o abuso, o funcionário ou o policial questionassem sua roupa. Não importa: ela é vítima e ponto”, diz a juíza. Tatiane coordenou o treinamento de 1 200 pessoas que recebem as denúncias, além de motoristas, cobradores e policiais. Chegou-se à minúcia de conversar com os funcionários da limpeza dos banheiros femininos, local aonde geralmente as mulheres vão buscar refúgio e limpar-se, com o risco de destruir provas do crime. Na semana do lançamento da campanha, o treinamento mostrou sua eficácia. Uma passageira denunciou um homem que havia ejaculado em seu pescoço no ônibus. O motorista e o cobrador cumpriram a cartilha: pararam o veículo, pediram que os demais ocupantes descessem e mantiveram o suspeito a portas fechadas até a chegada dos policiais. De agosto de 2017 até fevereiro deste ano, a cena se repetiu 38 vezes.

Uma pesquisa mostrou que 68% das mulheres temem ser importunadas em ônibus e trens

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Tatiane costurou a parceria entre as dezesseis instituições, num casamento entre empresas de transporte e órgãos de segurança, da Justiça e do poder público. Essa integração inédita permitiu, entre outras ações, a criação de um registro unificado das ocorrências de abuso sexual nos meios de transporte. As informações coletadas contribuem para o mapeamento das linhas e horários de maior incidência de casos, a fim de aumentar a segurança com a instalação de câmeras e a atuação de agentes à paisana nas áreas críticas.
Depois de quatro anos como juíza, ela assumiu a Vara da Violência Doméstica contra a Mulher no Fórum do Butantã, na Zona Oeste de São Paulo, em 2011, e entendeu que a violência precisa de outra abordagem. “Percebi que trabalhar só o processo era como enxugar gelo: você resolvia hoje e amanhã aquela mulher aparecia espancada de novo pelo marido”, conta. A solução foi unir-se a uma rede com profissionais das áreas de saúde, justiça, educação e assistência social para atuar em prevenção e no atendimento das vítimas de violência. Também passou a orientá-las antes das audiências e capacitou professores para identificar possíveis casos.

A luta pelas mulheres ganhou força quando Tatiane sentiu na pele o trauma da violência. Em março de 2016, o vendedor Alfredo José dos Santos, indignado com uma sentença por agressão com perda da guarda do filho, invadiu o gabinete da juíza, rendeu-a e ameaçou queimá-la viva. Foram vinte minutos de terror até ela ser salva por policiais. “Foi uma experiência marcante para eu entender o sofrimento da vítima”, diz. O aprendizado é essencial no seu novo desafio: estão em suas mãos todos os inquéritos relacionados a crimes contra crianças, adolescentes, idosos e deficientes da cidade de São Paulo, a maioria envolvendo estupro de menores de idade. “Sei o peso que carregam e a dificuldade de se sentar na cadeira da vítima e contar sua história. Por isso, faço de tudo para tornar esse dia mais positivo”, diz. Durante o depoimento, senta-se com as crianças numa sala especial e desenha, borda folhas naturais, escreve cartinhas ou pinta pedras que recolheu na rua. “São histórias terríveis. Há dias em que fico arrasada, sem acreditar no mundo”, conta. Nesses momentos, Tatiana pega a caixinha de madeira em que guarda as pedras decoradas com mensagens como “Te admiro” escritas pelas crianças. “É isso que me alimenta e faz tudo valer a pena.”

Publicado em VEJA de 17 de outubro de 2018, edição nº 2604

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