Carta ao Leitor: O Brasil e as liberdades
Nesta edição VEJA detalha dois episódios recentes que demonstram que o país enfrenta embaraços atávicos para lidar com liberdades, quaisquer liberdades
É velha a ideia de que o Brasil se transformou numa terra desolada que importa os maneirismos da modernidade sem compreendê-los com clareza. O crítico Roberto Schwarz, em seu célebre ensaio “As ideias fora do lugar”, já mostrava que a elite nacional gostava de refestelar-se nos princípios do liberalismo europeu enquanto sugava até a última gota o trabalho do escravo negro. O historiador Sérgio Buarque de Holanda, em seu clássico Raízes do Brasil, publicado em 1936, escreveu a frase famosa: “A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”.
Na semana passada, mais uma vez, o Brasil comprovou sua enorme dificuldade em lidar com conceitos que, uma vez importados como símbolos do progresso civilizatório, sofrem aqui uma deformação impiedosa. Tome-se, inicialmente, o caso do Supremo Tribunal Federal, o guardião da Constituição. Sentindo-se atingido por uma reportagem publicada por dois sites de notícias, o ministro Dias Toffoli, presidente do STF, pediu providências ao seu colega Alexandre de Moraes, que decidiu simplesmente censurar os dois veículos sob a alegação — falsa, aliás — de que a matéria jornalística era um “típico exemplo de fake news”. Diante dessa enormidade, pode-se afirmar que, para o ministro Alexandre de Moraes, o princípio constitucional que defende a liberdade de imprensa e proíbe a censura tornou-se um lamentável mal-entendido.
O outro exemplo já corre há dias e também se refere à liberdade — só que liberdade de outra ordem. O presidente Jair Bolsonaro, um político de alma estatista, proibiu a Petrobras de aumentar o preço do óleo diesel, entrando em confronto direto com o espírito liberal da equipe econômica. O ministro Paulo Guedes, para tornar o assunto ainda mais caricato, encontrava-se em Washington no dia em que Bolsonaro resolveu intervir no preço do combustível. E, em Washington, Guedes tentava convencer os hierarcas do FMI de que o Brasil está, desta vez, colocando-se firmemente no rumo do liberalismo econômico. Outro lamentável mal-entendido.
Os episódios recentes demonstram que o Brasil enfrenta embaraços atávicos para lidar com liberdades, quaisquer liberdades, de quaisquer categorias, seja a liberdade de imprensa, seja a liberdade econômica. Por que tanto mal-entendido? Por que tanta ideia fora do lugar?
Nesta edição, VEJA detalha os dois episódios, coloca-os em seus devidos contextos e tenta iluminar as questões acima. O pacote começa narrando o conflito essencial e perturbador de um governo com um presidente populista e uma equipe econômica liberal, passa pela decisão esdrúxula da censura à imprensa aplicada pelo STF, revela os bastidores do que está acontecendo com a Corte e termina com um ensaio sobre o significado das liberdades no país. Boa leitura.
Publicado em VEJA de 24 de abril de 2019, edição nº 2631