Os processos da Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF) mantiveram-se em marcha lenta em 2017. Desde que a maior investigação anticorrupção da história do Brasil eclodiu, em 2014, este é o quarto ano a terminar sem que o Supremo tenha concluído um processo sequer contra políticos às voltas com algum dos múltiplos esquemas de corrupção estatal, desvendados pela investigação e seus “filhotes” – Patmos, Greenfield, Sépsis, Cui Bono?, entre outros.
A despeito do marasmo do STF, a classe política trabalha arduamente para manter intacto o próprio pescoço. Neste ano, no entanto, as tramoias para brecar as apurações não foram tão eficazes à causa quanto uma decisão da própria Corte. Em outubro, o plenário do STF decidiu, por 6 votos a 5, que, dali em diante, prisões preventivas de parlamentares ou qualquer medida que afete seus mandatos “direta ou indiretamente” devem ser submetidas aos próprios parlamentares, em votações na Câmara, no caso de deputados, e no Senado, quando envolver senadores. Para o ministro Luís Roberto Barroso, o entendimento já garantiu lugar na “antologia de erros” do STF.
Os ministros analisavam uma ação movida pelos partidos PSC, PP e Solidariedade à época da suspensão do mandato do ex-todo-poderoso Eduardo Cunha (PMDB-RJ), preso em Curitiba desde outubro de 2016. A decisão, contudo, serviu à perfeição ao protagonista de uma negociata bem mais fresca: o senador Aécio Neves (PSDB-MG), afastado do mandato pela Primeira Turma do STF após ser gravado pelo empresário e delator Joesley Batista a lhe pedir 2 milhões de reais. Com a chancela da Corte, naturalmente, o Senado devolveu o mandato ao tucano por 44 votos a 26.
A sentença fez a festa de políticos enrolados em outras instâncias da Justiça. Com a decisão da mais alta Corte do país nas mãos, deputados estaduais de Mato Grosso, Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro tiveram suas prisões preventivas atropeladas em votações nas respectivas Assembleias Legislativas. Com a grita da Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), que moveu ações contra a extensão do “caso Aécio”, o plenário do STF analisou os casos e tem maioria para revertê-los. A votação foi suspensa e não há data para a retomada da sessão.
Ainda no STF, antes do apagar das luzes de 2017 no Judiciário, o ministro Gilmar Mendes (sempre ele) decidiu proibir o emprego de conduções coercitivas, expediente em que a Polícia Federal leva investigados obrigatoriamente a interrogatórios, amplamente utilizado pela Lava Jato e sua ninhada de apurações. Em sua decisão, que ainda será submetida ao plenário da Corte, Gilmar afirma que as 222 conduções coercitivas feitas na operação são “mais do que a soma de todas as prisões no curso da investigação – 218, sendo 101 preventivas, 111 temporárias, 6 em flagrante”. Ele ainda ressalta que “em inquéritos policiais não batizados como operações, a condução coercitiva é rara ou inexistente”.
A generosa contribuição do próprio Supremo e sua inércia penal ajudam, mas não iludem as excelências blindadas com foro privilegiado, que não aguardam o fim da letargia dos ministros para buscar meios de garantir a própria sobrevivência. Depois de dar seus primeiros passos em 2016, quando o multi-investigado senador Romero Jucá (PMDB-RR) externou a necessidade de “estancar essa sangria”, a já esperada reação política à Lava Jato tomou corpo em 2017 – anabolizada pelas pluripartidárias delações premiadas da Odebrecht e da JBS.
Neste ano, parlamentares criaram projetos feitos sob medida para enfraquecer a Lava Jato nas mais variadas instâncias. No Projeto de Lei 8045/2010, que trata da reforma do Código de Processo Penal e tramita em Comissão Especial na Câmara, foram enxertadas medidas como a restrição de prisões preventivas a pessoas que representem risco às investigações, excluindo a previsão da prisão para garantia da “ordem pública e econômica”, muito comum em casos de corrupção. A mudança nas prisões preventivas, prevista no Projeto de Lei 7028/2017, foi elaborada pelo deputado Wadih Damous (PT-RJ). Também assinado por Damous e incluído no projeto de revisão do Código Penal, o Projeto de Lei 7032/2017 pretende anular sentenças que “se limitarem a reproduzir o teor de depoimentos prestados durante a investigação preliminar, inquéritos ou demais procedimentos anteriores ao recebimento da denúncia, inclusive de delações premiadas, homologadas ou não”. No ano passado, o petista ainda elaborou o Projeto de 4372/2016, que, se aprovado, fará com que apenas pessoas em liberdade firmem acordos de delação premiada. A ideia ecoa a crítica de que a Lava Jato emprega prisões preventivas para forçar os investigados a contarem o que sabem.
O projeto que prevê penas duras ao abuso de autoridade é outro que avançou no Congresso em 2017 e causa apreensão em procuradores e juízes, por dar margem a retaliações e intimidações. O texto, que foi atenuado, enquadra como abuso de autoridade cerca de 30 ações, entre as quais decretar condução coercitiva de testemunha ou investigado sem prévia intimação ao juízo; fotografar ou filmar preso sem o seu consentimento; colocar algemas no detido quando não houver resistência à prisão e pedir vista de processo para atrasar o julgamento. O Senado aprovou o projeto em abril, por 54 votos a 19, e o texto seguiu à Câmara. Em outubro, depois de seis meses, o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), determinou a instalação de uma comissão especial para analisar o tema. “A comissão foi um pedido de associações de juízes e procuradores para garantir o debate”, explicou Maia. Pode até ser, mas o deputado João Carlos Bacelar (PR-BA), gravado por Joesley Batista em uma conversa pouco republicana, assim demonstrou a importância do texto aos políticos: “sobrevivência da espécie”.
Em que pesem os projetos anti-Lava Jato, as manifestações mais eloquentes da estima da classe política pelas investigações foram dadas no plenário da Câmara dos Deputados nos dias 2 de agosto e 25 de outubro. Nestas datas, os deputados analisaram as denúncias criminais da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o presidente Michel Temer (PMDB) – ambas lastreadas nas malas e gravações das delações premiadas de executivos da JBS – algo inédito em se tratando de presidentes no exercício do mandato. Caberia aos parlamentares decidir se as acusações poderiam seguir à análise do plenário do STF.
A primeira denúncia contra Temer, pelo crime de corrupção passiva no caso da mala com 500.000 reais entregue ao ex-assessor presidencial Rodrigo Rocha Loures, foi arquivada por 263 votos a 227. Na segunda, que versava sobre os crimes de obstrução à Justiça e organização criminosa, o apoio a Temer recuou (251 a 233) – mais por faturas não pagas no varejo de emendas parlamentares da primeira votação do que qualquer outra coisa. As denúncias contra o peemedebista serão analisadas pela Justiça quando ele deixar a Presidência.
Com a chegada das investigações ao Palácio do Jaburu neste ano – mais precisamente a uma sala reservada no subsolo da residência oficial do presidente –, Michel Temer também passou a se movimentar no campo de batalha da Lava Jato. VEJA revelou em junho que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência, investigava o ministro Edson Fachin, relator da operação no Supremo. O objetivo era encontrar qualquer informação que pudesse constranger e fragilizar o magistrado em sua posição. Ele havia acabado de homologar as delações premiadas dos executivos do Grupo J&F, incluindo Joesley Batista, interlocutor de Temer na famigerada – e gravada – conversa no Jaburu. VEJA mostrou que a apuração havia encontrado indícios de que o ministro usou um jatinho da JBS nos dias que antecederam sua sabatina no Senado, em 2015. Até agora, nenhuma prova da relação entre Fachin e a JBS veio a público.
Troca de comandos
Outro lance de Temer no tabuleiro envolveu escolha do novo chefe da Procuradoria-Geral da República, no final de junho. Ao final do mandato do procurador-geral, o presidente tem a atribuição de indicar o sucessor a ser sabatinado e referendado pelo Senado. Na sua vez, Temer decidiu não prestigiar o nome mais votado da lista tríplice da Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR), Nicolao Dino, e optou por Raquel Dodge, segunda colocada. Explica-se: Dino era visto como aliado de Rodrigo Janot, o procurador-geral que denunciou o peemedebista duas vezes e tornou-se desafeto dele; Dodge era uma rival de Janot na instituição. Um detalhe: em maio de 2016, diante de uma declaração do então ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, de que a lista tríplice não deveria guiar a escolha do chefe do Ministério Público Federal, Temer se apressou a desautorizar o auxiliar. Àquela altura, fazia questão de demonstrar que seu governo não tentaria influenciar os rumos da Lava Jato.
Desde que tomou posse no cargo, em setembro, Raquel Dodge imprimiu um estilo mais discreto à PGR e os vazamentos de informações sobre investigações, comuns na gestão de Rodrigo Janot, foram reduzidos. Em três meses à frente da instituição, Dodge apresentou uma única denúncia ao STF referente aos grandes esquemas de corrupção, justamente contra um ex-homem-forte de Temer. Ela acusa o ex-ministro Geddel Vieira Lima (PMDB-BA) dos crimes de lavagem de dinheiro e associação criminosa no caso do apartamento que abrigava 51 milhões de reais em Salvador. Também foram acusados o irmão de Geddel, o deputado federal Lúcio Vieira Lima (PMDB-BA), a mãe deles, Marluce, e outras três pessoas. Em outros casos, como os dos senadores Romero Jucá (PMDB-RR) e Agripino Maia (DEM-RN), a procuradora-geral reforçou ao Supremo denúncias apresentadas por seu antecessor, Janot.
O presidente também mexeu na direção do outro pilar das apurações anticorrupção: a Polícia Federal. No caso da PF, ao contrário da PGR, contudo, o diretor-geral não tem mandato e a troca não é obrigatória. Além disso, o escolhido de Temer, Fernando Segovia, diferente de Dodge, estava longe de estar entre os mais cotados na corporação. Sua nomeação para substituir Leandro Daiello, o mais longevo diretor-geral da PF após o fim da ditadura, com 11 anos no cargo, acabou interpretada como uma vitória do grupo do ex-presidente José Sarney (PMDB). Segovia foi superintendente da Polícia Federal do Maranhão, berço do clã Sarney.
Ao montar seu gabinete, o chefe da PF nomeou como diretor-executivo, o “número dois” da corporação, Sandro Torres Avelar, um ex-candidato a deputado federal pelo PMDB. Já o diretor de Combate ao Crime Organizado, Eugenio Ricas, assumiu o cargo depois de deixar a Secretaria de Controle e Transparência da gestão do governador Paulo Hartung (PMDB), no Espírito Santo.
Em sua cerimônia de posse, Segovia relativizou o uso da mala da JBS com 500.000 reais, entregue a um ex-assessor de Temer, como prova contra o presidente. “Uma única mala talvez não desse toda a materialidade criminosa que a gente necessitaria para resolver se havia ou não crime, quem seriam os partícipes e se haveria ou não corrupção”, disse o diretor-geral da PF.
STF em 2018: foro e prisões em segunda instância
Depois da decisão que garantiu ao Congresso a prerrogativa de derrubar prisões e medidas cautelares impostas pelo STF contra parlamentares, o Supremo terá pela frente, em 2018, além da pressão pelas primeiras sentenças contra políticos, ao menos dois julgamentos relevantes ao futuro da Lava Jato. Um envolve a restrição do foro privilegiado de deputados e senadores e o outro pode terminar com a revisão da possibilidade de execução de penas, ou seja, prisões, após condenações em segunda instância.
Já há sete votos na Corte para restringir o foro privilegiado de parlamentares a crimes cometidos durante o mandato e em função dele. A maioria no plenário da Corte foi construída em uma sessão no final de novembro. Votaram nesse sentido os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Marco Aurélio Mello, a presidente do STF, Cármen Lúcia, Edson Fachin, Luiz Fux e Celso de Mello. Um pedido de vista do ministro Dias Toffoli suspendeu a decisão. Não há prazo para retomada do julgamento.
A decisão sobre as prisões após condenações em segunda instância é incerta. Quando o plenário do Supremo decidiu sobre a atual regra, o resultado foi de 6 votos a 5. De lá para cá, houve uma mudança na composição do plenário: o ex-ministro Teori Zavascki, morto em janeiro de 2017, foi substituído por Alexandre de Moraes. Além disso, é certo que Gilmar Mendes mudará de posição – no julgamento anterior, ele votou favoravelmente às prisões após a segunda instância.