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Rogério Fasano: “Tive uma segunda chance”

Em plena pandemia, o empresário de hotéis e restaurantes de luxo passou por um transplante de fígado que o pôs de frente para a morte

Apresentado por Atualizado em 4 mar 2021, 20h25 - Publicado em 27 nov 2020, 06h00

Acostumado ao universo da mais alta gastronomia, Rogério Fasano, 58 anos, viu a vida passar do vinho finíssimo para a água ao entrar na fila do serviço público de saúde e esperar dois anos para receber, em outubro, um novo fígado. Diagnosticado com cirrose hepática e, posteriormente, câncer, o restaurateur, que bebia pelo menos duas garrafas de vinho por dia, parou de fumar, entrou em uma dieta rigorosíssima e nunca mais pôs uma gota de álcool na boca. “Cheguei a ouvir de um médico que para mim só restava fazer testamento”, conta Fasano, integrante da quarta geração da família que fez de seu nome um sinônimo de luxo, com sete hotéis e dezesseis restaurantes. Vestindo roupas visivelmente largas (perdeu 33 dos 105 quilos) e usando duas máscaras, o empresário, que é chamado por todos de Gero, recebeu VEJA no seu hotel em São Paulo, onde falou sobre os efeitos da pandemia nos negócios e o flerte com a morte. Além de, entre outros assuntos mais leves, manifestar sua opinião sobre os programas de competição culinária nas TVs: “Lembra um show de calouros. Os jurados parecem o Pedro de Lara”.

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Como o senhor descobriu que precisava de um transplante de fígado? Foi de uma hora para outra. Embora bebesse diariamente há quarenta anos, nunca tinha tido problema. É impressionante como a cirrose age de forma silenciosa e, de repente, seu fígado está condenado. Antes do diagnóstico, em outubro de 2018, tinha ido esquiar com amigos e me senti cansado, sem energia. Era um sinal. O alerta aconteceu três meses depois. Acordei um dia enjoado e estava com uma hemorragia interna. No hospital, viram que tinha tido uma trombose numa veia abdominal. Minha primeira reação diante da palavra transplante foi de negação.

Por quê? Ninguém troca um fígado por livre e espontânea vontade. Mesmo depois de entrar na fila, procurei vários médicos e acreditava que melhoraria só mudando o estilo de vida. Cortei carnes, embutidos, queijo, leite e parei totalmente de beber. O órgão reagiu, mas logo piorou. O momento-chave foi em junho deste ano, quando detectaram o câncer. Ali, pelo olhar do meu médico, vi que não tinha jeito.

A falência do fígado pode acarretar inclusive problemas neurológicos. O que o senhor sentiu? Cheguei a ter crises de confusão mental e fraqueza motora. Isso é causado pela encefalopatia, que é quando as toxinas não são eliminadas e vão para cabeça, através da circulação sanguínea. Fui a um restaurante japonês e mal segurava o hashi de tanto que tremia. Também me sentia meio avoado, zureta. Em Nova York, atravessei a Park Avenue desorientado e quase fui atropelado. Para não sobrecarregar o fígado, no final me alimentava praticamente de comida de astronauta.

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Para uma pessoa que sempre viveu no universo de luxo, como foi depender do serviço público? Olha, de verdade, foi uma questão tranquila. Vi que a fila de transplante do SUS é uma das coisas mais sérias do país. Embora muitos pensem que um empresário ou um sobrenome conhecido possa furá-la, isso é impossível e inadmissível. Como uma pessoa pode viver sabendo que tirou a chance de outra? Os critérios são severos e a posição avança de acordo com variantes técnicas e estado de saúde.

“Passava os dias vendo a fila no celular. Pacientes que se contaminavam com o novo coronavírus aguardando a cirurgia passavam na frente. Às vezes ia dormir número 26 e acordava 38”

Cogitou fazer o transplante fora do país? Sim, nos Estados Unidos, porque há mais doadores. Desisti quando vi que ficaria cinco, seis meses num hotel, longe da família. Também consultei especialistas lá. Ouvi de um médico estúpido americano que minha única chance era fazer um transplante triplo de pulmão, fígado e coração, mas, como já tinha stent, não resistiria. Perguntei o que ele faria no meu lugar. Resposta: um testamento.

Como é a esperada fila do SUS? Vira uma obsessão. Passava os dias vendo a lista no celular. Como só se pode ficar em uma fila, muitos escolhem São Paulo e o novo coronavírus aumentou a espera. Pacientes que se contaminavam aguardando a cirurgia e tinham o quadro hepático agravado acabavam passavam na frente. Às vezes ia dormir número 26 e acordava 38. Mudei para o Rio, onde a fila evoluiu bem neste ano, e em setembro chegou minha vez.

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Como foram os dias que antecederam o transplante? Os piores da minha vida. Cheguei a ouvir que só tinha um mês. Bate o pânico de não resistir até a cirurgia, de o câncer evoluir, dos problemas relacionados à pandemia. Uma hora você está pessimista, na outra sonha com uma viagem, faz planos com os filhos, na seguinte se pega chorando. Fui para o hospital três vezes. Na primeira houve um problema com o processo de doação. Nas outras duas, os órgãos estavam contaminados pela Covid. Fui finalmente operado no dia 9 de outubro.

Teve medo de morrer? Lógico. Passa tudo pela cabeça, inclusive raiva. Você começa a se perguntar: e se eu tivesse me cuidado mais? Por que tanta irresponsabilidade, tanta inconsequência? Muitas e muitas vezes virei noites trabalhando. Isso tudo mexeu comigo. Após a cirurgia, passei por uma bad trip, que dizem que é causada pela anestesia. Tive a sensação de encontrar meu pai, que faleceu há dois anos, e ele me dava um grande esporro, dizia que não estava na hora de ir.

O senhor diz que bebia diariamente. Considera-se alcoólatra? Para os padrões americanos, todo mundo que bebe mais de uma dose por dia é. Eu não vejo assim. Ninguém consegue trabalhar tanto e construir o que eu construí sendo alcoólatra, uma doença que o tira da sociedade, arruí­na a família. Comecei a beber ainda jovem, o que me ajudava a melhorar da gagueira, um mal de família. Com o trabalho, passou a ser todos os dias. Começava com vinho branco, depois tinto e lá iam duas garrafas. Martelei meu fígado por quatro décadas. Hoje, até posso tomar uma taça, mas não tenho vontade.

No pior momento, chegou a se despedir da família? Hoje consigo rir disso. Não me despedi, mas fiz um testamento que ia dar um trabalhão para ser cumprido. Minhas cinzas iriam para Veneza e no velório eu usaria meu terno azul da sorte e o relógio do meu avô. A música seria Longe, do Arnaldo Antunes: “Onde é que eu fui parar, aonde é esse aqui? Não dá mais pra voltar”. Adoro, mas é para se acabar de chorar.

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O restaurante Gero no Rio foi reaberto há um mês. Não tem medo de perder dinheiro por causa da pandemia? Quem não estiver ciente de que pode perder dinheiro não faz negócio. Depois de meses fechado, decidi mudar o Gero de lugar e reabri-lo no hotel, onde era o Fasano Al Mare, com um deque ao ar livre. A mudança é reflexo da nova fase, em que os sócios cariocas saíram e eu e o grupo JHSF assumimos a operação. Aliás, estou muito satisfeito com a parceria da JHSF. A turma que trabalha lá é toda muito bem preparada e escolhe os seus executivos com maestria no mercado. O nosso DNA tem uma característica em comum: a coragem.

Houve rumor de briga com os sócios cariocas. O que aconteceu de fato? Não quero falar nomes, mas a sociedade simplesmente terminou. Eram reuniões infindáveis, querendo se guiar pelos concorrentes. Me recuso a adotar uma mussarela de quinta só porque o vizinho usa. Não é que eu goste de mandar, mando naquilo em que tenho certeza de que estou certo.

Fala-se que o vírus esvaziou Nova York. Por que o senhor está investindo na cidade mesmo assim? Nova York não vai morrer, assim como Paris não morreu depois da II Guerra e Londres também não. Daqui a pouco vai estar todo mundo lá. Vamos inaugurar em dezembro um hotel na Quinta Avenida e, em março, um restaurante, 100% italiano clássico, onde funcionou o icônico Four Seasons. Esse é meu grande desafio no momento. Como diz um amigo, preciso me preparar para sair no New York Times.

Acredita que a alta gastronomia resistirá aos protocolos da pandemia? Não tenho dúvida. As regras são necessárias, mas não será assim forever. Agora, o que mais surgiu nos últimos tempos foram os filósofos do amanhã, gente que defende temas como reinventar-se, uma palavra que detesto.

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O senhor acabou tendo de se adaptar ao sistema de delivery. Como foi ver seus pratos em caixas para viagem? Não dá para dizer que foi fácil. Eu sou fresco. E não é só isso. Raríssimas coisas viajam bem, se mantêm no ponto. Se uma pizza entregue não é igual à do restaurante, imagina uma massa al dente. Essas são coisas muito graves para mim.

Vários chefs devolveram suas estrelas ao Guia Michelin. O senhor acha que o modelo perdeu relevância? O Michelin resolveu se “reinventar” como pop e moderninho e está sem prumo. Em 2009, eles deram uma estrela para um ítalo-caipira que tinha meses de vida em São Paulo. O modelo se perdeu porque, agora, eles estão mais interessados em criar notícia. Modéstia à parte, o restaurante Fasano é unanimidade em São Paulo há mais de trinta anos. O Michelin simplesmente ignora, finge que não existe, e não sou só eu que digo isso.

“O Michelin resolveu se ‘reinventar’ como pop e moderninho e está sem prumo. Deram uma estrela para um ítalo-caipira que tinha meses de vida em São Paulo. O modelo se perdeu”

Dá para a figura do chef se misturar com a do restaurateur? Querem acabar com a minha profissão, que é quem concebe tudo e entende de restaurante. Além da gastronomia, o momento à mesa tem de ser um enorme prazer. Restaurante de chef costuma ser chato. Não suporto lugares onde se tem a sensação de que tudo é técnico e o chef está lá para ser aplaudido.

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Como o senhor vê a popularização das competições culinárias na TV? Os programas que ensinam são até divertidos. Adorava a dona Palmirinha. Já os que julgam, honestamente, dão vergonha alheia. Lembra aquele negócio de show de calouros. Fica todo mundo parecendo Pedro de Lara, aquele jurado malvado dos antigos programas de auditório.

O senhor publicou um anúncio incentivando a doação de órgãos. Virou sua bandeira? Passar por uma lista de espera dessas é uma das experiências mais impactantes na vida. Tive vontade de fazer isso. A fila funciona, mas a conta não fecha e várias pessoas não resistem aguardando um doador.

O flerte com a morte lhe trouxe reflexões? Tive uma segunda chance. Percebi minha fragilidade de forma muito louca. Isso incentiva uma transformação. Estou cheio de projetos, mas pode ser que uma hora vire bicho do mato e vá morar na Toscana.

Publicado em VEJA de 2 de dezembro de 2020, edição nº 2715

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