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“O extremismo mata”, diz Alex Garland, diretor do sucesso ‘Guerra Civil’

O prestigiado cineasta fala sobre a crise das democracias, os perigos do populismo digital e por que o cinema é uma ferramenta para questionar o poder

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 26 abr 2024, 14h12 - Publicado em 26 abr 2024, 06h00

Logo no início da pandemia, em 2020, Alex Garland contraiu covid-19. O cineasta inglês ficou muito debilitado e, quando se recuperou, sentiu uma confusão mental parecida com a do protagonista de Extermínio, filme de 2002 escrito por ele. Na trama, o personagem vivido por Cillian Murphy acorda do coma em uma Londres tomada por zumbis e criminosos. Na vida real, Garland não deparou com mortos-vivos, mas ficou em choque ao ver o noticiário: em meio às centenas de milhares de mortes, diversos governantes mundiais espalhavam fake news, e manifestações antirracistas eram reprimidas por policiais americanos. O mundo estava um caos. Foi então que ele concebeu Guerra Civil, filme sobre um hipotético (mas assustadoramente realista) conflito interno nos Estados Unidos que lidera as bilheterias no momento no país de Biden e Trump — e também no Brasil. Garland, hoje aos 53 anos, iniciou carreira como autor de romances — entre os quais, A Praia, um tratado pop sobre as desilusões com as utopias modernas. Mas foi como cineasta que atingiu a consagração: é ele a mente por trás de Ex_Machina, filme que examina os perigos da inteligência artificial. Em Guerra Civil, Garland faz um retrato incisivo — e polêmico — de como o extremismo leva uma sociedade a se autodilacerar. Na entrevista, o diretor fala sobre os bastidores da produção, sua relação com o jornalismo e como foi trabalhar com o astro brasileiro Wagner Moura.

O filme Guerra Civil é narrado pelo ponto de vista de três repórteres — interpretados por Kirsten Dunst, Wagner Moura e Cailee Spaeny. Por que essa escolha? Existem muitos pontos de vista que podem ser explorados em um filme sobre guerra. Pode ser uma família tentando fugir e sair de um lugar rumo a outro, ou um grupo de soldados envolvidos no conflito, por exemplo. Eu escolhi esses protagonistas porque quis fazer um filme sobre o ofício do jornalismo e sua importância para a sociedade. É uma profissão que sofre inúmeras críticas — muitas delas válidas, inclusive. Mas que, na verdade, enfrenta tentativas constantes e desproporcionais de desmoralização. O jornalismo é essencial para a democracia.

A que se deve sua crença nisso? Sem a liberdade de imprensa, não há equilíbrio de poderes. A democracia é formada por leis e instituições com poderes distintos. Cabe ao jornalismo reportar quando há um desequilíbrio entre essas instâncias.

Apesar do tema corajoso, Guerra Civil é criticado por algumas pessoas por ser um filme supostamente “isentão”, que deixa em aberto sua mensagem. Concorda? Digo que o filme oferece respostas, mas de forma sutil. É um aceno ao grande debate sobre o jornalismo: ele deve apenas reportar o que aconteceu ou apresentar um juízo de valor? Os protagonistas falam no filme que o papel deles é entregar a informação e cabe a quem a recebe analisar o que aquilo significa.

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No filme, a personagem de Kirsten Dunst é uma fotojornalista que se sente desolada por ter passado anos registrando os horrores da guerra pelo mundo afora com o objetivo de alertar contra esse tipo de conflito — e então vê seu próprio país ser atingido. É também sua intenção alertar para a tragédia da guerra? Sim, com certeza. Guerra Civil é um alerta contra a violência política. Porém, é ainda mais sobre o que a precede: conflitos civis são produto do extremismo, seja ele político, econômico ou religioso. Geralmente, as pessoas são levadas ao extremo por políticos populistas. Entre seus piores efeitos está a supressão dos direitos humanos. É uma escalada inevitável. Logo a imprensa é reprimida, surgem presos políticos, o aumento da violência. O extremismo mata. Quase todo genocídio na história humana foi fruto dessa forma de ódio.

Guerra Civil é um alerta contra a guerra. Porém, é ainda mais sobre o que a precede: esses conflitos são um produto do extremismo, seja ele político, econômico ou religioso”

Os Estados Unidos estão perto de mais uma eleição presidencial conturbada e havia a expectativa de que Guerra Civil fosse mais incisivo contra os rompantes autoritários de Donald Trump e de seus partidários republicanos. O que pensa de quem não gostou do filme por essa razão? Eu li esse tipo de crítica de jornais progressistas. Mas quem faz essa análise está seguindo a mesma estrada dos extremistas. Para mim, a crise mundial hoje não é entre esquerda e direita, mas entre extremistas e o centro.

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Como assim? Veja meu caso. Eu me considero alguém de centro. Acredito em ideologias da esquerda, como a visão que ela tem sobre a economia de livre mercado, sobre a sociedade — mas, por outro lado, dialogo com meus amigos de direita. O que não tenho são amigos extremistas. Para mim, essa é a diferença: há extremismo na direita e na esquerda e, apesar de se apresentarem como inimigos, eles se retroalimentam e precisam um do outro para sobreviver.

Acredita que essa análise se aplica também a um país como o Brasil? Com certeza. Ela se aplica ao Brasil, ao Reino Unido, a Israel, Holanda, Itália, e diversos países asiáticos. É um fenômeno do nosso tempo que se espalhou pelo mundo. Optei por ambientar o filme nos Estados Unidos porque é um país enorme e muito poderoso. O resto do mundo olha para os americanos, admirando ou odiando — fato é que tudo que acontece por lá ecoa na nossa direção.

Com sua trama que acompanha as manipulações de uma androide ardilosa, Ex_Machina (2014) lançou um olhar perturbador sobre os riscos da inteligência artificial — hoje uma ferramenta explorada por grupos extremistas nas redes sociais. Como analisa esse cenário, e por que deixou o tema de fora em Guerra Civil? Foi uma escolha não mergulhar nas razões do conflito. Mas, claro, as redes sociais e a inteligência artificial são parte dessa engrenagem. Em inglês usamos a expressão “a perfect storm” (uma tempestade perfeita) quando vários fatores se unem e culminam em uma situação drástica, deixando a tormenta ainda pior do que ela já seria. Acho que as empresas de tecnologia são devastadoramente irresponsáveis no modo como priorizam o lucro e seu poder de influência em detrimento da responsabilidade social.

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Na minissérie Devs, o senhor narra — com as devidas doses de sarcasmo e espírito crítico — a história de um bilionário do ramo da computação. Por que resolveu abordar essa elite do mundo digital em sua ficção? Sou um grande e incisivo crítico desses gigantes da tecnologia. Devs é uma ficção científica sobre as possibilidades desse ramo de estudo da física, mas eu quis no fundo mostrar quanto esses bilionários agem com pouquíssima regulamentação e muito acesso. Eles se acham o máximo e são chamados por muita gente de gênios, mas, na verdade, não são geniais: trata-se apenas de empresários querendo ter mais poder e influência do que deveriam.

Wagner Moura é um celebrado ator brasileiro e tem um papel importante em Guerra Civil, como o jornalista que é viciado na adrenalina de perseguir a notícia. Por que o escolheu? Eu o vi pela primeira vez em Narcos, a série da Netflix na qual Wagner interpreta Pablo Escobar. A produção é muito sofisticada e ele está muito bem. Quando o conheci, logo nos demos bem e não tive dúvidas que era dele o papel.

De onde veio essa certeza? O Wagner Moura é brilhante. É um excelente ator e uma ótima pessoa. Ele era perfeito para o papel, pois tem um jeito brincalhão e despojado, mas, por baixo dessa faceta, é caloroso e inteligente. Uma personalidade que se encaixou perfeitamente no tipo de personagem que eu imaginei.

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O filme estreou no topo das bilheterias americanas, passando dos 45 milhões de dólares por lá em duas semanas — um feito para uma produção independente. Curiosamente, entre os fatores que impulsionaram esse resultado está o sucesso entre eleitores republicanos do sexo masculino. Era um estrato de público que o senhor esperava atingir? Olha, esse filme só não deve ser visto por crianças, pois é muito violento. No geral, quero que ele seja visto por qualquer pessoa que esteja disposta a chegar com a mente aberta. Sei que meus filmes são provocativos, mas o que eu quero provocar não é raiva, medo ou violência. Não quero arranjar briga com ninguém. O que eu quero com minha obra é que as pessoas reflitam e questionem o poder.

Fala especificamente de poder político? Sim, mas também de outros tipos de poder. Seja o poder das grandes empresas de tecnologia, seja o poder militar, ou religioso. Sempre questione o uso do poder. Não quero incitar a uma paranoia, mas, sim, a uma inquietude. Todos sabemos que o poder corrompe, não importa quem esteja com ele nas mãos. Então, espero que as pessoas saiam do cinema refletindo sobre o mundo onde vivem.

O filme é, de fato, bem violento. Acha que encontrou um equilíbrio capaz de retratar a brutalidade humana sem incitá-la? Existe a violência real e existe a violência cinematográfica. Uma é completamente diferente da outra. Optei por algo mais próximo da realidade, a violência que é vista em zonas de guerra, que é muito mais perturbadora e horrível do que qualquer filme possa mostrar. Assim como as pessoas que, nesse tipo de contexto, se divertem com a dor alheia. A guerra extrai o pior do ser humano. De novo, o filme é um alerta contra tudo isso, não uma incitação.

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“As empresas de tecnologia são devastadoramente irresponsáveis no modo como priorizam o lucro e seu poder de influência, em detrimento da responsabilidade social”

Seu pai, Nicholas Garland, é um famoso cartunista político na Inglaterra e cofundador do jornal The Independent. Ele serviu de inspiração na concepção desses personagens? Com certeza. Eu cresci cercado por jornalistas na mesa de jantar. Meu pai é uma inspiração, assim como meu padrinho e o padrinho do meu irmão, ambos correspondentes de guerra. Eu quis ser jornalista, mas desisti.

Por quê? Sou melhor escrevendo ficção do que não ficção. A reportagem não dá espaço para liberdades criativas. Uma matéria jornalística precisa de apuração e precisão ao narrar fatos. Além disso, escrever é um processo difícil e complexo. Sempre que escrevo analiso palavra por palavra, para passar corretamente as informações. Mas as pessoas raramente leem com tanta atenção e podem interpretar erroneamente o texto. É como um sabonete molhado na mão, que me escapa e não consigo controlar. Com a ficção, me sinto mais confortável para passar a ideia que eu tenho.

É verdade que planeja se aposentar? Olha, eu preciso dar um tempo de dirigir filmes. É bem exaustivo. Também quero voltar a escrever romances. Vamos dar tempo ao tempo.

Publicado em VEJA de 26 de abril de 2024, edição nº 2890

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