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Alta gastronomia vai sobreviver ao vírus, diz chef francês Daniel Boulud

Celebridade da gastronomia que escancarou as portas de Nova York para a cozinha francesa garante ter aprendido a não se abalar com as críticas

Apresentado por Atualizado em 4 mar 2021, 20h21 - Publicado em 5 fev 2021, 06h00

Aos 65 anos, Daniel Boulud tem lugar na constelação de chefs celebrados mundialmente por ter aberto como nenhum outro as portas da cozinha americana para as técnicas e temperos franceses. Ao pisar na concorrida cena gastronômica de Nova York, há mais de três décadas, ele não se despiu das tradições fincadas lá atrás pelos grandes mestres — como Roger Vergé e Michel Guérard, fundadores da nouvelle cuisine, com quem trabalhou —, mas se pôs a inovar promovendo junções de ingredientes que viriam a ser vastamente copiadas, como o seu famoso hambúrguer recheado de foie gras. Criado na fazenda da família nos arredores de Lyon, na França, Boulud, que estreou como cozinheiro aos 14 anos, hoje comanda dezessete estabelecimentos — nove só em Manhattan, entre eles o Daniel, que ostenta duas estrelas no venerado Guia Michelin. Mesmo em meio à crise pandêmica, planeja abrir mais um ainda neste ano, situado em um dos longilíneos espigões da cidade. Com um inglês de sotaque inconfundivelmente francês, ele falou a VEJA sobre as adaptações da alta gastronomia ao mundo pós-vírus e desmistificou a aura de glamour que acompanha seu ofício.

A pandemia e os novos rituais de segurança que ela impõe vão mudar a experiência da alta gastronomia? Sinceramente, tirando a maior preocupação com os protocolos de higiene, que é muito bem-vinda, não acredito que o cenário atual perdurará. A busca por experiências que alcem as pessoas a uma realidade cercada de sensações agradáveis que elas normalmente não têm acompanha a espécie humana. E uma boa mesa, onde os ingredientes são combinados de forma especial, servidos com zelo e degustados em demorados ritos, funciona como um respiro para a alma daqueles que podem pagar. Por isso, acredito que a demanda por alta gastronomia seguirá firme, com tudo o que ela embute.

Mas os restaurantes mundo afora, incluindo os seus, estão passando por uma radical adaptação que interfere diretamente nessa experiência, não? Sem dúvida. Esta é a fotografia hoje, um momento em que garantir a segurança do cliente e da equipe se sobrepõe a qualquer outro objetivo. Daí a série de medidas que estamos adotando, como cardápio com QR code, para evitar o manuseio do papel, divisórias de acrílico entre as mesas, aferição de temperatura na porta, garçons paramentados de máscara e luva. Fico só pensando no mestre Paul Bocuse (1926-2018) assistindo a uma cena dessas. Ele chegou a ver de tudo na vida, até pela II Guerra Mundial passou, mas tenho certeza de que nunca imaginaria nada tão distópico.

Por que o senhor simplificou o serviço e os cardápios de seus restaurantes? A crise pandêmica exige uma adaptação ao bolso das pessoas, que ficou mais vazio. Por um tempo, até tirei do menu foie gras e caviar. Também percebo que o período pede uma maior informalidade, uma leveza para lidar com dias tão áridos, sem tanta pompa. Fora que os ajustes que estou fazendo, um corte aqui, outro ali, tornam a operação mais econômica, algo vital para um negócio vingar nesses tempos estranhos. Mas friso: acho que, depois desta, a espécie humana continuará a aspirar o luxo.

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“A busca por experiências que levem a uma realidade cercada de sensações agradáveis acompanha a espécie humana. A boa mesa funciona como um respiro para a alma”

Após os ataques terroristas de 11 de setembro, duas décadas atrás, o senhor nunca mais havia fechado a porta do Daniel. Foi sofrido? Foi. É uma loucura tocar uma operação com 800 pessoas e, de repente, suspender tudo sem ter nenhuma ideia do que acontecerá. As ruas de Nova York ficaram subitamente às moscas e todo mundo sentiu aquele vazio que dá quando se perde o chão.

No caso dos restaurantes que já ofereciam preço razoável e serviço casual, o desafio da sobrevivência é mais complicado? Acredito que sim. Pense em um estabelecimento pequeno, com poucas mesas no salão: onde ele vai conseguir eliminar custos? Em Manhattan, logo que começaram a flexibilizar as regras, 40% dos restaurantes decidiram não abrir porque a conta simplesmente não fechava.

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O senhor percebe nos países onde trabalha — Canadá, Inglaterra, Singapura e outros — elevada demanda por comer fora mesmo com tantas restrições? Para mim, está claro que as pessoas que exploraram o fogão de casa e se divertiram pela primeira vez com isso durante o confinamento estão cansadas, não querem mais requentar as sobras do dia anterior nem aguentam mais pedir delivery. Além disso, estão procurando romper com o marasmo na medida em que sua condição financeira e a situação da pandemia permitam.

O que o trouxe para esse negócio cedo na vida foi a diversão que o ato de cozinhar lhe proporciona. Acabou virando um homem de negócios? Nunca deixei de cozinhar, especialmente no Daniel e na cozinha da minha casa. Provo todos os menus de meus restaurantes pelo mundo e discuto prato a prato, no detalhe. Dito isto, dedico parte importante do meu tempo a questões de gestão e à matemática, que começa na escolha inteligente dos ingredientes das receitas e inclui até a forma de prepará-las.

É centralizador? Olho o processo inteiro, aprovo tudo, mas cada chef que trabalha comigo tem a liberdade de ser criativo e espontâneo, dois atributos que admiro e procuro incentivar. Muitos jovens aspirantes a chef cultivam uma ideia distorcida do ofício. Acham que chegar alto na hierarquia de uma cozinha é só fama e glamour.

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Até onde isso procede? A vida real obviamente está muito longe de ser desse jeito. Apesar dessa aura que ronda a profissão, o trabalho é duro e inesgotável. Todos os dias você fica debruçado por horas a fio sobre um fogão, fechado em uma cozinha sob altas temperaturas, na briga para criar algo singular. É uma atividade que requer grandes doses de vigor, concentração e iniciativa.

Os programas culinários na TV contribuem para sedimentar a ideia de que a carreira de chef é glamorosa? A televisão certamente edita a realidade e transforma o trabalho em show, ainda que certas vezes exponha as entranhas da cozinha. Mostra um mundo em geral muito bacana, enquanto o ofício é cheio de obstáculos.

Como chegou à condição de cozinheiro celebridade? Pode parecer clichê, mas a paciência em graus extremos contou muito, assim como ter conseguido manter a atenção no árduo aprendizado. Além disso, é claro, foi decisivo ter observado de perto e atentamente grandes gênios em ação.

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O senhor poderia citar alguns? Vi Georges Blanc liderando uma cozinha com energia de sobra e disposição para implementar mudanças respeitando a tradição. Com Roger Vergé, aprendi o verdadeiro sentido da hospitalidade. Era exigente, durão, mas sempre divertido, um ingrediente que conta para uma cozinha funcionar bem. Ele sabia entreter. Michel Guérard era um poeta ao fogão. Dele tirei a criatividade e a busca permanente pela perfeição.

Como chef e também comensal, como define um bom restaurante? Ele precisa oferecer uma experiência única, emocional e se manter fiel a sua essência enquanto segue em constante evolução. Esse é um equilíbrio interessante: há um constante afã pelo novo, e isso é desejável, mas não suplanta o conforto de regressar ao que é antigo e familiar.

A gastronomia já abraçou diversos movimentos, como a nouvelle cuisine e a cozinha molecular. O que está por vir? Quase três décadas atrás, vimos o surgimento da bistronomia, quando grandes cozinheiros criaram refeições requintadas a preço acessível. Isso continua até hoje por aí, assim como várias heranças da nouvelle cuisine e da cozinha molecular. Outras tendências são só modismos, que vêm e vão, sem deixar saudade. O fato é que o que é realmente bom fica e mantém a gastronomia na necessária rota do progresso. Não sei o que está por vir, mas aposto sempre no aprimoramento e na inovação dos clássicos à base do conhecimento que nunca paramos de acumular.

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Cresce o número de pessoas se tornando vegetarianas e veganas. Isso é um desafio para os grandes mestres da gastronomia? É um desafio, sem dúvida, mas delicioso. Não vejo o vegetarianismo como algo que limite, pelo contrário. Um chef pode exercer toda a sua criatividade com vegetais, especialmente se tiver boa conexão com seus fornecedores ou contar com produção própria, o que garante a qualidade. Quando você cozinha em uma região onde as quatro estações trazem uma janela de sabor renovado a cada mês, a tarefa é profundamente divertida.

“Quando o Michelin chegou a Nova York, o Daniel já existia. Me deram estrela, me tiraram estrela. Claro que dói, mas no final das contas o cliente é o juiz. Se for bem servido, ele volta”

O Daniel perdeu uma de suas três estrelas Michelin em 2015, mas permanece no primeiro lugar do ranking do TripAdvisor em Nova York. O que é mais importante para o senhor: as estrelinhas ou a avaliação dos clientes? Quando o Michelin chegou a Nova York, o Daniel já existia. Me deu estrela, me tirou estrela. Claro que dói, mas no final o cliente é o juiz. Se a experiência é boa, ele volta.

A história do venerado Guia Michelin envolve polêmicas, processos e até suicídios de chefs que não suportaram a pressão. Como convive com a crítica? Eu não estaria cozinhando por quase cinco décadas se não tivesse aprendido a suportar a pressão, e ela não é pouca. Perder estrelas pode ferir, mas calma lá. Não dá para cozinhar voltado para o objetivo de ganhar um prêmio. E mais: se a decisão do guia de subtrair uma estrela não for política nem perniciosa, sempre haverá uma chance de reconquistá-la. O jogo segue.

A melhor comida do planeta ainda está em Paris? Paris sempre será Paris pela diversidade da oferta e a concentração de talentos que não param de inovar e reinterpretar sua excepcional culinária. Mas Tóquio está no topo da minha lista. É um lugar onde se reverencia os ingredientes e suas estações, o compromisso com a tradição, e se cultiva um olhar extraordinário para a precisão e a perfeição.

Como avalia a gastronomia brasileira? Adoro sua vertente mais tradicional, que deriva de um caleidoscópio de culturas de imigrantes e ingredientes únicos. O Brasil tem muitos jovens talentosos na ativa, uma turma formada no próprio país, outra com passagens por grandes restaurantes do planeta. Estive aí no Carnaval de 2020 e comi maravilhosamente bem.

Publicado em VEJA de 10 de fevereiro de 2021, edição nº 2724

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