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Chuvas: por que o Brasil não consegue evitar essa tragédia

A época dos temporais e as áreas de risco são mais do que conhecidas. Mas um atoleiro de descaso faz o país contabilizar todos os anos vítimas e prejuízos

Por Cida Alves
7 jan 2012, 07h52

Os brasileiros mal tiveram tempo de apagar da memória as cenas da tragédia que matou quase mil pessoas na Região Serrana do Rio de Janeiro, há um ano, e já revivem o drama de populações inteiras ilhadas e cidades debaixo d’água com as chuvas de verão. Como acontece todos os anos, os temporais trouxeram, a reboque, cheias dos rios, desabamentos de encostas, soterramentos de casas e mortes.

Nestes primeiros dias de 2012, já há registro de mais de 40.000 pessoas desabrigadas ou desalojadas e mais de uma centena de cidades em situação de emergência na Região Sudeste, uma das principais áreas afetadas todos os anos pelo fenômeno climático mais previsível do país. Até agora treze pessoas morreram. O rastro de destruição – por enquanto – não se compara ao do ano passado. Mas os meteorologistas avisam que este verão será de muita chuva.

No dia 13 de janeiro de 2011, após sobrevoar o local da tragédia no Rio, a presidente Dilma Rousseff prometeu mais investimentos em prevenção. Um ano se passou e a promessa ficou perdida no atoleiro da burocracia e no uso político de recursos públicos que deveriam ter destino certo: as áreas de maior risco.

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Levantamento do Serviço Geológico do Brasil (CPRM), órgão do governo federal, informa que 56 municípios deveriam ter prioridade na realização de obras de prevenção de desastres. Destas cidades, 28 têm 178.000 pessoas vivendo em áreas de risco “alto ou muito alto”. Em Ouro Preto, cidade histórica de Minas Gerais, por exemplo, duas pessoas morreram soterradas.

O Ministério da Integração Nacional afirma que realizou ações preventivas no último semestre nas 56 cidades áreas consideradas prioritárias.Não é o que mostram os dados disponíveis para consulta. Nenhum centavo do Orçamento de 2011 do Programa de Prevenção e Preparação para Desastres foi gasto nestas localidades.

Enquanto isso, o ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra, teve de explicar por que o estado de Pernambuco, seu berço político, ficou com 90% desta verba. Além de não ter nenhum município entre os de alto risco, Pernambuco tampouco tem cidades entre as que deveriam ter prioridade nas obras de prevenção. O valor recebido pelo estado de Bezerra foi catorze vezes maior que o do segundo colocado, o Paraná, que sofreu com fortes chuvas em março de 2011.

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O uso político de verbas é “tradicional” na pasta. Quando Geddel Vieira Lima era o ministro, a Bahia, seu estado de origem, ocupava o topo do ranking dos estados que recebiam mais dinheiro para prevenção de desastres. Questionado, Bezerrra tentou se justificar dizendo que Pernambuco “não pode ser discriminado”. Ele ainda tentou tirar 50 milhões de reais do Orçamento de 2012 da obra de transposição do Rio São Francisco para destinar recursos a uma barragem em Pernambuco.

Prevenção – Outro fato que fica evidente nas cifras é que o governo prefere reconstruir aquilo que foi destruído a evitar a devastação provocada pelas chuvas de verão. Levantamento da ONG Contas Abertas mostra que, entre 2004 e 2011, o governo federal gastou oito vezes mais em obras de reconstrução do que com a prevenção de desastres. Foram 5,8 bilhões para reconstrução contra 695 milhões destinados a ações de prevenção. (veja na arte abaixo)

Para o diretor da ONG, Gil Castello Branco, também há uma explicação política para essa diferença. “O que fica melhor para o governo: dar um monte de dinheiro para reconstruir uma cidade arrasada pela chuva ou, num dia de sol, retirar uma família pobre de sua casa numa área de risco? O desgaste político das medidas de prevenção é muito maior”, afirma. No ano em que o governo havia prometido reforçar os gastos em prevenção, apenas 30% dos 508,5 milhões destinados ao programa foram aplicados.

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É tão nítida a escolha por remediar o desastre que já se tornou comum o anúncio de liberação de grandes somas de dinheiro quando acontece uma tragédia. Foi assim no caso da Região Serrana, quando foram liberados por Medida Provisória (MP) 780 milhões de reais para obras. Um ano depois, pouco mais de 100 milhões haviam sido empregados. Este ano, mais dinheiro surgiu como mágica. O governo federal liberou mais 482,8 milhões de reais.

PAC – Além da verba do Ministério da Integração Nacional, outras obras de prevenção estão incluídas no orçamento do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), segundo o Ministério das Cidades. O problema é a lentidão para que essas obras saiam do papel. Só agora, no PAC 2, serão incluídas obras de contenção de encostas, uma “demanda nova”, segundo o ministério. O governo prevê a aplicação de 626,8 milhões entre 2011 e 2014 em medidas de redução de riscos. No entanto, dos 173,7 milhões aprovados no Orçamento de 2011, nenhum centavo foi gasto na preparação para as chuvas deste verão.

O Ministério das Cidades diz que aplicou 250 milhões em obras de drenagem em Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis. O site de VEJA esteve no local e constatou que o investimento ainda está longe de minimizar o risco para quem permanece ali.

O governo federal alega que, para liberar a verba, os municípios precisam apresentar projetos. Para isso, elaborou uma cartilha para orientar as prefeituras. Os municípios, por sua vez, afirmam que não têm pessoal qualificado nem dinheiro para elaborar planos de prevenção. E que a responsabilidade não pode ser colocada somente na conta das prefeituras. “O governo conhece a realidade dos municípios e sabe que não há estrutura. Quando acontece uma tragédia, tentamos priorizar a reconstrução”, diz o presidente da Confederação Nacional dos Municípios, Paulo Ziulkoski. “Em 90% dos casos, enviamos projetos para o governo federal, que demora meses para liberar a verba. Imagine no caso de prevenção”.

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Rede de alerta – Uma das poucas coisas que mudaram desde a tragédia do Rio foi a criação do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), que começou a funcionar em setembro, mas passou a operar 24 horas em dezembro, em plena temporada de chuvas. Segundo o diretor do centro, Reinhadt Fuck, além das previsões meteorológicas, o Cemaden pode identificar os locais onde há possibilidade de desastres.

Alguns alertas já foram emitidos nas enchentes ocorridas nos últimos dias. Apesar de afirmar que a tecnologia do centro é suficiente, Fuck reconhece que a rede de radares ainda não cobre todas as áreas críticas. “Minas Gerais ainda está em fase de testes e não há cobertura no Espírito Santo”. Ambos estão entre os estados mais afetados pelas chuvas deste início de ano. O diretor do Cemaden afirma que o país “acordou” para o problema das chuvas em 2011 e agora está “correndo contra o relógio”.

Mesmo podendo prever com algumas horas de antecedência um deslizamento ou enxurrada, toda essa informação se perde em uma rede de Defesa Civil desordenada e mal estruturada. Os alertas do Cemaden vão para o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad), que teria a função de repassar os alertas e coordenar as ações das Defesas Civis. Porém, além de não ter sede estabelecida, o Cenad só deve ter um concurso para contratação de pessoal especializado em março.

Seguindo até a ponta desta rede, constatamos que pouco mais da metade dos 5.565 municípios brasileiros possuem Defesa Civil. “Mas algumas só existem no papel”, afirma a pesquisadora do Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres (Ceped) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Sarah Cartagena. Em alguns casos, a Defesa Civil é criada em uma situação de emergência e, controlado o problema, não volta mais a atuar. Ou o prefeito assina um decreto instituindo a Defesa Civil e nomeando um coordenador que só fica sabendo que tem o cargo quando acontece algum desastre e é solicitado. “A prevenção fica bastante prejudicada”, afirma Sarah.

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A pesquisadora explica que a criação do Cartão de Pagamento da Defesa Civil, que está em fase piloto em 25 municípios, foi uma das poucas ações do governo que pode melhorar esse sistema. Com ele, a Defesa Civil municipal precisa ter um CNPJ próprio, o que garante o controle da aplicação do dinheiro.

Ocupação desordenada – Outro desafio na prevenção de desastres no país por causa das chuvas é a ocupação desordenada do solo. Comuns são os casos de famílias que, após perder tudo, voltam a ocupar beiras de rios e áreas de encostas assim que a terra seca. Geralmente esse fenômeno ocorre pela demora na entrega de habitações em locais seguros ou porque essas famílias deixam de receber ajuda, como o aluguel social.

“Faltam políticas de controle de ocupação destas áreas. As pessoas ocupam locais condenados pela Defesa Civil e não acontece nada. Até que vem a tragédia”, afirma o professor do Instituto de Geologia da Universidade de Brasília (UnB), João Willy Corrêa Rosa. O principal programa habitacional do governo Dilma, o Minha Casa, Minha Vida, não constrói casas exclusivamente para populações de áreas de risco, mas essas pessoas são consideradas prioritárias nas seleções, que ficam a cargo das prefeituras.

Em todos os níveis de governo, o mar de lama do descaso faz a população assistir anualmente à reprise de um filme triste, repleto de mortes, perdas e desolação. No jogo de empurra para encontrar um culpado, sobra até para a natureza, tachada de “implacável” e “imprevisível”. Recentemente, o ministro de Ciência e Tecnologia, Aloízio Mercadante, usou o argumento para afirmar: “Vai morrer gente neste verão. E nos próximos”.

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O meteorologista Luiz Cavalcanti, do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), explica que choveu acima da média nos últimos três anos. E que continuará chovendo mais – o que não é nenhuma surpresa. “Conseguimos fazer a previsão destes fenômenos meteorológicos extremos com até três meses de antecedência. Os alertas, nós enviamos. O que falta agora são políticas públicas sérias para evitar estas tragédias”, afirma. Não dá mais para culpar o clima.

Saiba por que o Brasil não consegue vencer a batalha contra as chuvas:

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