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‘Brasil está sob holofotes por causa da Copa e deve tirar lições da tragédia’, diz especialista americano em incêndios

Especialista americano em prevenção de incêndio afirma que o Brasil pode tirar lições da tragédia em Santa Maria, a exemplo do que ocorreu nos EUA em 2003

Por Jean-Philip Struck
30 jan 2013, 16h20

“Os novos códigos de incêndio americanos teriam exigido no mínimo três saídas para atender um público desse tamanho”

As investigações da tragédia da boate Kiss, em Santa Maria (RS), que provocou a morte de 235 pessoas – a maioria jovens – apontam para uma sucessão de erros, passando por negligência, falta de fiscalização, omissão e desrespeito a normas de segurança. Em 2003, os Estados Unidos testemunharam uma tragédia parecida quando a casa noturna The Station, em Rhode Island, pegou fogo e provocou a morte de cem pessoas. Lá, o incêndio deixou lições.

“O Brasil está sob holofotes por causa da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Quando um evento desses ocorre num momento como esse, a responsabilidade é ainda maior”, afirmou Robert Solomon em entrevista ao site de VEJA. Solomon é dirigente da National Fire Protection Association (NFPA, a associação nacional de proteção a incêndios), uma organização não governamental. Fundada em 1896, ela reúne seguradoras, corporações de bombeiros e indústrias que sugerem a elaboração de regras para a prevenção de incêndios e mudanças na legislação. Muitas dessas regras foram adotadas por dezenas de estados americanos depois do episódio na boate The Station.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista, por telefone, ao site de VEJA.

Perfil

Robert Solomon

Especialista em prevenção de incêndios e elaboração de códigos de segurança

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Robert Solomon é ligado à National Fire Protection Association (Associação Nacional de proteção a incêndios, ou NFPA), uma organização não governamental fundada em 1896 e baseada nos Estados Unidos. O grupo reúne seguradoras, corporações de bombeiros e indústrias que sugerem a elaboração de regras para a prevenção de incêndios e mudanças na legislação. Muitas dessas regras foram adotadas por dezenas de estados americanos.

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O que pode ser feito para evitar situações como o incêndio da boate em Santa Maria? Há muitas semelhanças chocantes entre as tragédias de Santa Maria e da discoteca The Station, em Rhode Island. Nos dois casos, houve uso de pirotecnia em um lugar inapropriado, instalação de material inflamável no teto, além da inexistência de saída de incêndio adequadas e falta de sinalização de emergência. Outro elemento que deve ser analisado é a superlotação. Em Rhode Island, também havia excesso de público. Um aspecto chocante do incêndio de Santa Maria é o fato de a boate só contar com uma saída. Os novos códigos de incêndio americanos teriam exigido no mínimo três saídas para atender um público desse tamanho (investigadores estimam que havia mais de 1.000 pessoas na boate Kiss).

Os legisladores sempre estão sugerindo novas leis e códigos de conduta, mas no incêndio de Santa Maria nem mesmo as regras que já existiam parecem ter sido respeitadas. Como fazer valer a legislação? Ao investigarmos o que aconteceu em Rhode Island, observamos que nem mesmo as leis e regras que já existiam foram respeitadas. Os donos do local haviam instalado isolamento de poliuretano para não incomodar os vizinhos com o barulho. A instalação desse material era proibida nesse tipo de estabelecimento, já que é altamente inflamável. Também houve desrespeito às regras que determinam a quantidade máxima de pessoas no local. Eles (os donos) queriam ganhar mais dinheiro, mas isso foi feito às custas dos frequentadores que morreram. Quando a fiscalização ocorre, os inspetores normalmente aparecem pela manhã, quando a boate está vazia. É ótimo ver o lugar à luz do dia, observar tudo com calma. Mas também é preciso – e isso é muito importante – que a fiscalização também ocorra quando a boate está aberta, lotada, durante a noite, numa sexta-feira, por volta da meia-noite. Os fiscais têm que observar onde os frequentadores vão se sentar, onde vão se escorar, e se as saídas de incêndio não vão ficar obstruídas por mesas que são colocadas só no horário de funcionamento. Mas, mesmo que essas fiscalizações ocorram com frequência, boa parte da segurança vai depender do dono. Os bombeiros e fiscais podem inspecionar um local, dar o aval, mas logo depois o dono pode realizar mudanças em sua propriedade por conta própria, mudanças que só vão ser observadas na próxima inspeção. Quando os proprietários começam a subverter as regras é que se criam as circunstâncias que levam a uma tragédia.

Qual a responsabilidade dos servidores, bombeiros e fiscais, que são negligentes ao liberar ou nem chegam a inspecionar esses estabelecimentos? Isso é um problema. Nos EUA, existem muitas leis, seja no âmbito municipal ou estadual, que protegem servidores públicos em casos de negligência. O caso de Rhode Island foi emblemático. Tínhamos esse fiscal que inspecionou a boate, elaborou relatório, mas não detectou a presença do material proibido usado para o isolamento acústico. A cidade acabou sendo processado pelas vítimas, mas o funcionário foi protegido de ações cíveis e criminais. Após o incêndio, esse funcionário não foi demitido e nem chegou a ser preso. Ele chegou a fazer cursos conosco na NFPA. Ele sabe que tem alguma responsabilidade, se arrepende, mas está protegido por essas leis.

Que mudanças ocorreram nos EUA após o incêndio da boate em Rhode Island? Houve mudanças nos códigos elaborados pela NFPA. Uma das recomendações feitas depois do incêndio em Rhode Island e que foi adotada em todo o país foi obrigar os donos de novas boates a instalar sistemas automáticos de sprinkles (sistema semelhante a uma pequena ducha instalado nos tetos). Eles funcionam independentemente da causa do incêndio, seja ela criminal ou acidental e são automáticos. Também aumentou a rigidez contra a superlotação. Sugerimos ainda mudanças no desenho e disposição das portas de emergência.

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Quais são as primeiras medidas que o governo pode e deve tomar? Como as autoridades e o público podem aproveitar a comoção causada pela tragédia para provocar mudanças na segurança desses lugares? Uma tragédia que provoca a morte de mais de 200 pessoas, muitas delas universitários, desperta a atenção. O governo precisa aproveitar a reação para reforçar a fiscalização das leis e regras que já existem. Quando uma tragédia assim ocorre num momento desses no Brasil, a responsabilidade é ainda maior. O país já está sob holofotes por causa da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Nenhum turista deveria pensar, depois de assistir um jogo ou uma prova, ao voltar para o hotel, que é inseguro sair numa casa noturna do país. Nos EUA, as mudanças foram feitas depois da tragédia de Rhode Island. As inspeções devem ser reforçadas e os fiscais devem ter ainda mais autoridade para fechar a boates caso elas apresentem irregularidades. E os locais devem ser fechados até as coisas serem corrigidas. Claro que os donos vão ficar chateados e exercer pressão, mas isso vai forçar mudanças.

Falta uma legislação nacional sobre o funcionamento de casas noturnas e os códigos de incêndio no Brasil. Cada cidade e estado decide quais são as regras. Existe um problema similar nos EUA? Nos EUA não existe uma legislação federal. Há apenas sugestões elaboradas por órgãos como a NFPA, que podem ser adotados pelos estados. Nós não temos poder para obrigar os estados a adotar essas regras, mas logo depois do incêndio de 2003 muitos estados adotaram nossas sugestões.

Nos incêndios dos EUA e de Santa Maria, a tragédia foi provocada por um dispositivo pirotécnico ativado por um membro da banda. As chamas acabaram atingindo um material isolante altamente inflamável que produziu um gás tóxico que sufocou os frequentadores. Esse tipo de “espetáculo” deve ser proibido? Nós elaboramos regras para uso desses equipamentos. São quase 80 condições que levantam questões como: a pessoa que vai operar o equipamento está habilitada? Há paredes com material inflamável no local? Há extintores de incêndio? É uma lista extensa. Esse tipo de coisa só é mesmo apropriada em lugares muito grandes, com o teto alto, espaço aberto. Em apresentações como o Super Bowl [final do campeonato de futebol americano] artistas se apresentam com esse tipo de equipamento. Mas, apesar de serem locais fechados, os estádios e arenas são enormes. A pergunta é: É possível usar pirotecnia em interiores com segurança? Sim. E se a pergunta for ‘em todos os prédios?’ . A resposta é não. Em Rhode Island, a banda nunca poderia ter usado pirotecnia de uma maneira segura.

Quais as medidas que o público de casas noturnas e locais similares pode tomar? Eu imagino que para maioria das pessoas que frequenta boates a segurança não é uma preocupação. É preciso uma mentalidade similar à que as pessoas têm em aeroportos, quando veem uma coisa estranha ou têm alguma suspeita, elas dizem algo. Numa boate, procure onde está localizada a saída secundária ou qualquer porta. As pessoas devem observar materiais estranhos que podem estar obstruindo portas. Se o lugar parece suspeito, é o caso de falar para quem estiver com você ‘eu não estou me sentido seguro aqui’. Sabemos que para muitas pessoas com 20 e poucos anos isso pode parecer uma preocupação exagerada, mas gastar um minuto observando isso pode fazer a diferença.

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