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Em meio à pandemia, países improvisam para abrigar os sem-teto

ONU estima haver 800 milhões de moradores de rua em todo o planeta; estacionamentos e centros esportivos tornam-se opções precárias de proteção

Por Caio Mattos Atualizado em 23 abr 2020, 20h57 - Publicado em 23 abr 2020, 13h07

Se a única receita eficaz para prevenir o contágio da Covid-19 é ficar em casa, pelo menos 800 milhões de pessoas em todo o mundo não têm como cumpri-la, conforme dados do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (CDH). Expostos à rápida infecção e potenciais vetores da doença, os moradores de rua desafiam os governos, do Brasil à China, em especial os que historicamente ignoraram essa população. Soluções improvisadas e apressadas, porém, se mostram tão atrapalhadas e quanto distantes da proteção efetiva dessa população.

A Covid-19 já atingiu mais de 2,5 milhões de pessoas e ceifou quase 180.000 vidas em todo o planeta desde que os primeiros casos foram identificados na China no final do ano passado. A trajetória das curvas de contágio e de mortes dependerão tanto da capacidade dos sistemas nacionais de saúde em prover tratamento como da simples recomendação para que cada pessoa se mantenha em suas casas e, ao saírem nas ruas para atividades essenciais, se distanciem umas das outras. 

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“Diante dessa pandemia, a falta de acesso a moradias adequadas é uma sentença de morte em potencial para as pessoas que vivem em situação de rua”, disse Leilani Farha, relatora especial do CDH, logo depois da publicação de um relatório do organismo, neste mês, sobre a gravidade da situação para os sem-teto, sob risco contínuo de contaminação.

“A habitação tornou-se a linha de frente da defesa contra o coronavírus. A moradia raramente foi uma questão de vida ou morte como neste momento”, ressalta.

Brasil 

A situação é especialmente desafiadora nas metrópoles brasileiras, que reúnem uma parcela mais significativa de moradores de rua. A prefeitura de São Paulo estima haver 24.000 desabrigados na cidade – famílias inteiras em alguns casos. Desse universo, 13% tem mais de 60 anos de idade e, portanto, está na faixa de maior risco de contaminação. Os fatos de a capital paulista ser o epicentro da Covid-19 no Brasil, com 11.265 casos confirmados da Covid-19 e pelo menos 847 mortes até a terça-feira 21, e de seus leitos de UTI estarem praticamente lotados, aumenta a gravidade do quadro para os desabrigados.

Em março, as autoridades municipais anunciaram a criação de cinco abrigos emergenciais para acolher 400 pessoas em situação de rua. A rede de albergues da cidade já comporta pelo menos 17.000 vagas. Mas esses locais estão longe de prover a proteção contra o vírus de uma casa e, não raro, a forma como estão organizados não atraía os desabrigados nem mesmo antes da pandemia.  

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“É preciso pensar na condição desses albergues. Se as pessoas ficam aglomeradas e os quartos não têm ventilação, esses albergues correm o risco de se tornar ambientes de disseminação do vírus”, afirmou a VEJA Rebeca Guedes, especialista em Saúde Pública da Universidade de São Caetano do Sul.

De fato, o maior abrigo da cidade de São Francisco, nos Estados Unidos, reportou mais de 100 casos, incluindo dez entre funcionários do local, desde o início abril. A Secretaria Municipal de Assistência Social de São Paulo informou ter realizado 416.704 atendimentos a pessoas em situação de rua entre os dias 16 de março e 17 de abril. Em muitos casos, porém, resumiu-se à entrega de uma refeição.

Em março, a prefeitura criou sete novos serviços de atendimento emergenciais, com funcionamento em 24 horas, e abriu 594 novas vagas em abrigos. A rede municipal conta com dez Núcleos de Convivência para a “reintegração social” dessa população, com 3.172 vagas.

Rebeca Guedes alerta para o fato de a população de rua de São Paulo estar exposta à falta de acesso a medidas básicas de higiene, e a doenças crônicas, como a tuberculose. A pandemia, segundo ela, agravou uma situação que já não era ideal. “A alimentação das pessoas em situação de rua sofreu um impacto direto do isolamento social. Elas perderam as doações de alimentos que costumavam ser feitas pelos comerciantes”, explica.

Moradores de rua comem refeição doada por entidade da favela Chapéu Mangueira perto da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro: abrigo no Sambódromo – 11/04/2020 (Lucas Landau/Reuters)

No Rio de Janeiro, a prefeitura pretende abrir mais de 550 vagas em abrigos, dentre elas cerca de 400 no Sambódromo Marquês de Sapucaí. Cada quarto desse albergue terá cerca de sete camas e pelo menos um ventilador, informou Secretaria Municipal de Assistência Social a VEJA. Levantamento da Defensoria Pública, porém, indica a existência de cerca de 15.000 moradores de rua na capital fluminense.

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A Secretaria afirmou ter realizado mais de 10.500 atendimentos a pessoas em situação de rua, dentre os quais 4.596 acolhimentos em abrigos, até a terça-feira 21. Em um cálculo prévio, pode-se deduzir que dois terços dessa população continua exposta às intempéries e sem nenhum resguardo contra o coronavírus.

Tanto no Rio como em São Paulo, uma das medidas anunciadas foi a reforma dos Consultórios na Rua, uma iniciativa pública destinada à saúde dos desabrigados. Mas acabou esquecida. “Esses consultórios não têm o nível de complexidade para o atendimento que a Covid-19 exige. Quem contrair o vírus, precisará recorrer aos hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS)”, lembra Guedes.

Europa

Pode parecer rara a existência de moradores de rua nas nações mais desenvolvidas. Mas essa dura realidade afeta ricos e pobres sem distinção. Mais de 8.800 pessoas dormiam nas ruas londrinas, os rough sleepers, sem nenhuma alternativa de abrigo, em 2019, segundo estimativa da prefeitura da capital do Reino Unido. No final de março, o primeiro-ministro do  Boris Johnson, prometeu diante do Parlamento que essas pessoas receberiam o financiamento público “de que precisem e merecem”.

Mas a Public Interest Law Centre e outras organizações não-governamentais acusam o governo britânico de cometer “falha contínua no fornecimento de apoio adequado” a essa população e também aos imigrantes presos no país devido à quarentena.

Até o final de março, as autoridades municipais de Londres abriram pelo menos 300 quartos de hotel aos desabrigados. O Ministério da Moradia, Comunidades e Governo Local do Reino Unido também alegou no início de abril ao jornal The Guardian que foi oferecido um lugar para proteção  a 90% dos moradores de rua “conhecidos pelas autoridades locais” e “mesmo àqueles não tinham feito pedido”.

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As autoridades locais, porém,  não revelam quantas pessoas em situação de rua são essas “conhecidas”. O Guardian estima que o Reino Unido junto à União Europeia contabilizem 700.000 desabrigados.

Sem-teto dorme na porta de loja de sapatos fechada no centro de Londres, no Reino Unido, que oferece abrigo para os moradores de rua `conhecidos’ – 05/04/2020 (Dylan Martinez/Reuters)

Mais de 155.000 pessoas na França vivem atualmente em abrigos financiados de maneira direta ou indireta pelo Estado. Para conter a Covid-19, o governo vai dispor de mais 14.000 vagas, além das previstas antes da pandemia, até o final de maio. Além disso, 80 abrigos foram destinados para isolar moradores de rua já contaminados pela Covid-19 e que não precisem de internação em UTIs.

Mesmo que as Nações Unidas aconselhem os governos a não permitir que pessoas em situação de rua sejam “punidas na imposição das medidas de toque de recolher ou de contenção”, a prática tem sido adotada na França e também na Itália.

Nas cidades francesas de Paris e de Lyon, desabrigados chegaram a ser multados em março, segundo o portal de notícias Euronews. Florent Gueguen, diretor da Federação de Agentes de Solidariedade, uma associação de 800 instituições de caridade, pede a “interrupção imediata” dessas sanções, que podem chegar a 135 euros, o equivalente a 767 reais.

A polícia municipal de Milão, na Itália, denunciou na Justiça um ucraniano em situação de rua “por não cumprir as disposições” da quarentena no início de março. Logo depois, as autoridades locais anunciaram que o ucraniano não seria mais processado e desistiram das sanções aos desabrigados por desacato às medidas de isolamento social. A cidade conta com pelo menos 300 pessoas desabrigadas, segundo o jornal La Repubblica.

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Desabrigando usa máscara protetora em seu “abrigo”, debaixo de um viaduto de Nice, na França: risco de tomar multa – 6/04/2020 (Eric Gaillard/Reuters)

Estados Unidos

A cidade de Nova York, com 8 milhões de habitantes, tornou-se epicentro da pandemia de coronavírus nos Estados Unidos e registra mais de 147.000 casos da Covid-19 e 15.000 mortos, segundo levantamento da Johns Hopkins University, de Washington. Como comparação, a Itália, país mais atingido pela pandemia na Europa, contabilizou 168.000 enfermos, de acordo com o Departamento de Proteção Civil italiano.

Pois dentre os 125.000 casos novaiorquinos, pelo menos 460 envolviam pessoas em situação de rua até a terça-feira 14, reportou a emissora de televisão americana ABC News. Ao todo, 27 desabrigados morreram na cidade em decorrência da Covid-19. O prefeito de Nova York e ex-pré-candidato à Presidência dos Estados Unidos, Bill de Blasio, anunciou no sábado 11 que 6.000 “adultos solteiros” serão acolhidos em hotéis para evitar aglomerações em abrigos. O governo municipal desembolsa cerca diárias de 200 dólares (1.050 reais) no sistema hoteleiro da cidade para cada sem-teto com sintomas da Covid-19 e, portanto, para tornar possível o isolamento.

“Diante dessa pandemia, a falta de acesso a moradias adequadas é uma sentença de morte”, diz Leilani Farha, relatora especial do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas

Dentre as medidas recomendadas pelas Nações Unidas frente à situação de desabrigo, o uso da rede hoteleira como abrigo temporário não é uma opção para Las Vegas, segundo Jace Radke, porta-voz do governo municipal. Capital dos cassinos nos Estados Unidos, a cidade tem disponível 150.000 quartos em hoteis. Mas a solução dada pela administração municipal não traz conforto nem isolamento para quem precisa de um teto.

“Nenhum dos hotéis está aberto. Não há funcionários em nenhum deles. O governo municipal não possui nenhum hotel”, esquivou-se Radke. 

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Entre 28 de março e 2 de abril, a prefeitura de Las Vegas deslocou 500 desabrigados para o estacionamento a céu aberto de um estádio poliesportivo. A medida foi tomada após um princípio de surto em um abrigo. Cada um foi posto no espaço antes delineado para veículos. Após a repercussão negativa, tendas foram levantadas para protegê-los das intempéries. A prefeitura, entretanto, denomina o local como um “complexo de isolamento” ao custo de 6 milhões de dólares.

De acordo com relatório da Casa Branca de setembro de 2019, há nos Estados Unidos mais de 500.000 moradores de rua, dos quais 350.000 têm acesso a abrigos. O país é o epicentro mundial da pandemia, com quase 843.000 casos confirmados de contaminação pelo coronavírus até a quinta-feira, 23. Mais de 42.500 pessoas morreram de Covid-19 no território americano.

África do Sul

Situação semelhante à de Las Vegas é vista em Pretória, na África do Sul, onde pelo menos 1.000 moradores de rua foram agrupados em tendas levantadas no Caledonian Stadium, uma arena de futebol com capacidade nas arquibancadas para apenas 5.000 torcedores.

Segundo as autoridades sul-africanas, em alguns casos, mais de dez desabrigados dividem a mesma tenda, embora cada uma seja planejada para, no máximo, três pessoas.

“Garantir que acomodações de emergência permitam o distanciamento social” de pelo menos dois metros de espaço, como recomendado pela OMS — é uma das demandas do relatório de abril das Nações Unidas.

O Ministério do Desenvolvimento Social sulafricano estima abrigar cerca de 15.000 pessoas em situação de rua na província de Gauteng, onde fica Pretória e Joanesburgo, a maior cidade do país, com quase 960.000 habitantes. O país registrou 3.635 casos de Covid-19 e 65 mortes até quinta-feira, 23.

Desabrigado observa tendas improvisadas armadas em estádio de Pretória, África do Sul: até dez pessoas por barraca – 09/04/2020 (Siphiwe Sibeko/Reuters)

Argentina

Mergulhada há anos em crise econômica, que levou 35% da população à linha de pobreza e 8% à de indigência, a Argentina contabiliza pelo menos 7.250 pessoas em situação de rua em sua capital,  Buenos Aires, segundo levantamento de 2019 feito por 50 organizações sociais. A cifra representa um aumento de mais de 20% em relação aos dados de 2017, segundo o portal de notícias Infobae.

Dedicados à coleta de materiais recicláveis ou à simples mendicância, os cartoneros continuam desabrigados diante das portas de lojas e bancos, sem acesso nem mesmo a um cômodo na Villa 31, no bairro do Retiro, a maior favela da região central da cidade, onde já há dois casos confirmados de contaminação pelo coronavírus.

Com os abrigos lotados, a prefeitura de Buenos Aires iniciou neste mês a remocão dos moradores de rua para centros poliesportivos e hotéis. Mas, até o começo do mês, apenas 700 haviam sido trasladados segundo Alejandro Amor, autoridade da Defensoria Pública Municipal. Antes da pandemia, menos de 2.000 desabrigados da cidade já não estavam dormindo nas ruas, mas em abrigos.

O país está sob quarentena rígida desde 19 de março. Ainda assim, registrava 3.288 casos de contaminacão e 159 mortos até a quinta-feira, 23.

Padre conversa com desabrigada após uma missa online na Quinta-feira Santa em Buenos Aires, Argentina: centros poliesportivos como alternativa de teto – 09/04/2020 (Agustin Marcarian/Reuters)

 

Japão

Não era difícil, em tempos anteriores à pandemia, observar tendas azuis em alguns parques de Tóquio, onde viviam moradores de rua. Em comparação com outros países, essa população é bem mais diminuta Japão. O Ministério da Saúde, do Trabalho e do Bem Estar Social estimou no início de 2019 haver mais de 4.500 pessoas em situação de rua no país, das quais 1.100 apenas na capital, Tóquio

Autoridades municipais afirmam que estão providenciando temporariamente quartos de hotel e outros tipos de acomodação aos desabrigados, reportou o portal de notícias Nikkei Asian Review. Para acelerar o processo de acolhimento, o governo de Tóquio suspendeu temporariamente a exigência de documentação para comprovar que a pessoa tenha vivido mais de seis meses na cidade para ter direito de acesso a um abrigo.

Cerca de 42% dos desabrigados no Japão, porém, têm mais de 65 anos de idade, segundo estudo de 2017 do Ministério da Saúde. Estão, portanto, no grupo de risco da Covid-19, que atingiu 12.615 pessoas e provocou a morte de 294 delas até a quinta-feira, 23.

(Com AFP e Reuters)

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