Mais de um ano após a detecção do primeiro caso de coronavírus na China, a pandemia ainda está longe de acabar. Diversos países registram mais casos de Covid-19 a cada dia – 107 nações tiveram mais infecções nas últimas duas semanas do que nas anteriores – e muitos decidiram reimpor os bloqueios nacionais para conter a propagação do vírus. Contudo, o clima está diferente do início do ano. A possibilidade cada vez mais tangível da aprovação de uma vacina surgiu como um raio de esperança em meio aos indicadores negativos.
Na segunda-feira 23, a farmacêutica AstraZeneca, cujo projeto de imunização ocorre em parceria com a Universidade Oxford, do Reino Unido, divulgou que os testes clínicos em larga escala provaram sua candidata até 90% eficaz. Para efeito de comparação, análises da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que a vacina para influenza tem 60% de eficácia entre adultos.
Poucos dias antes, na sexta-feira 20, o governo dos Estados Unidos anunciou que entraria com um pedido de aprovação para a vacina contra a Covid-19 da Pfizer, em parceria com a BioNTech. A agência reguladora de remédios do país, a FDA, vai analisar a impressionante eficácia de 95% da candidata. Além disso, a farmacêutica Moderna já indicou eficácia de 94,5% a partir de uma análise preliminar de sua vacina.
Investimento de alto risco
A corrida pela imunização está chegando a um ponto crítico, pelo qual todos estavam esperando: todas as incógnitas acerca do coronavírus não impediram governos e organizações internacionais de investirem pesado para obter uma vacina o mais rápido possível. Na quinta-feira 19, chegaram ao Brasil as primeiras 120.000 doses da vacina CoronaVac, de um total de 6 milhões, desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac em parceria com o Instituto Butantan – e é provável que esse seja o primeiro de muitos pedidos e que várias empresas diferentes cheguem ao mercado.
Segundo um levantamento do jornal americano The New York Times, 54 candidatas já estão sendo testadas em humanos, e pelo menos outras 87 estão em estágio pré-clínico, testadas em animais. Ávidos por uma solução para a crise global de saúde, organizações e governos já reservaram 9,6 bilhões de doses, antes mesmo de qualquer uma delas chegar ao mercado.
Contudo, como a maioria dos recursos do mundo, as vacinas contra a Covid-19 não estão distribuídas de maneira igualitária. De acordo com o Global Health Innovation Center, da Universidade Duke, os países ricos fizeram mais da metade das compras antecipadas: ao menos 6,1 bilhões de doses foram confirmadas.
A maior (e a menor) fatia do bolo
Governos que podem arcar com os custos estão comprando um portfólio de vacinas, na esperança de que ao menos uma passe pelo processo regulatório. Só os Estados Unidos são responsáveis por quase um sexto das compras, tendo pré-encomendado mais de 1 bilhão de doses, vindas de meia dúzia de farmacêuticas – três doses por pessoa. O Canadá, por sua vez, bateu a proporção recorde, comprando quase dez doses para cada habitante, de um total de sete farmacêuticas diferentes.
Os países com capacidade interna de desenvolvimento de vacinas foram os primeiros a garantir grandes negócios. Aqueles com capacidade de fabricação, como Índia e Brasil, fizeram acordos de fabricação para garantir as compras antecipadas: indianos garantiram 1,17 doses por pessoa, enquanto brasileiros têm 0,93. Mas os países de baixa renda sem capacidade de fabricação, ou de conduzir testes clínicos, foram deixados de fora do processo de negociação, tornando-se completamente dependentes da COVAX (aliança co-liderada pela OMS para desenvolver e distribuir uma vacina acessível).
O esquema já comprou 700 milhões de doses, promete acesso igual a todos os 172 países participantes, independentemente da renda. Mas a aliança só garante doses suficientes para vacinar um quinto da população de cada país – no total, 60% da população mundial teria acesso à imunização.
A Universidade Duke disse não ter encontrado evidências de negócios diretos por países de baixa renda, sugerindo que eles dependem inteiramente da cobertura populacional de 20% da COVAX.
Alguns países ricos já ofereceram formas de auxílio. A Austrália, além de prometer cinco doses para cada um de seus cidadãos, também se comprometeu a ajudar vizinhos do Pacífico, como Vanuatu e Kiribati. A China, que aderiu à COVAX em 9 de outubro, prometeu compartilhar suas vacinas com Burma, Camboja e Filipinas.
Contudo, algumas das grandes economias – como Estados Unidos, China, União Europeia e Rússia – que poderiam ajudar países com com menos possibilidades econômicas ou sistemas de saúde mais fracos ficaram de fora da aliança. O Brasil, apesar de garantir sua quota por fora, participa da iniciativa.
Breque na esperança
Apesar da sensação de luz no fim do túnel, ainda há muitas incógnitas em relação às vacinas contra a Covid-19. O CEO da AstraZeneca, Pascal Soriot, disse que ainda não está claro quanto tempo essa proteção vai durar, mas disse suspeitar que pode ser de apenas um ano, sendo ecoado pelo presidente-executivo da BioNTech, Ugur Sahin. Também é possível que muitas pessoas rejeitem a imunização: um estudo feito em junho com 13.000 pessoas em 19 países mostrou que mais de um quarto dos entrevistados não tomaria uma vacina segura e eficaz.
Além disso, as compras antecipadas serão irrelevantes se o suprimento de vacinas eficazes for insuficiente. Segundo a Universidade Duke, modelos atuais preveem que apenas em 2023 ou 2024 haverá vacinas suficientes para cobrir a população mundial. A capacidade de fabricação pode ser expandida com investimento direcionado, mas apenas até certo ponto.
A candidata da Pfizer, por exemplo – a primeira a solicitar autorização de uso de emergência –, foi comprada pelo Canadá, União Europeia, Israel, Japão, Espanha, Suíça, Reino Unido, Estados Unidos e Equador. Isso equivale a cerca de 600 milhões de doses do medicamento, quase metade do total que todos os fabricantes afirmam poder produzir até o final de 2021.
Onde cada candidata está
O desenvolvimento da vacina normalmente leva anos, mas a maioria das vacinas contra a Covid-19 está sendo testada em fases sobrepostas para acelerar o processo. O governo dos Estados Unidos, por exemplo, prometeu imunizar ao menos 20 milhões de pessoas já em dezembro.
Testes pré-clínicos: A vacina é testada em animais, como camundongos e macacos, para que cientistas avaliem a resposta imunológica. Segundo o Times, há 87 candidatas nesta fase.
Fase 1: Cientistas administram a vacina a um pequeno número de pessoas para testar a segurança e a dosagem, e confirmam se ela ativa o sistema imunológico. Ao menos 37 candidatas passam pelos chamados “testes de segurança”.
Fase 2: Desta vez, a vacina é administrada a centenas de pessoas de diferentes grupos (crianças, adultos e idosos, por exemplo), para identificar se há diferenças na resposta imunológica. Ao menos 17 vacinas passam por esses testes de segurança em larga escala, e as que não demonstram segurança geral nas fase 1 e 2 não seguem o processo. Alguns exemplos são a o fabricante de vacinas indiana Zydus Cadila, a alemã CureVac (que colabora com a Tesla, empresa de Elon Musk), a empresa Arcturus Therapeutics (em parceria com a Faculdade de Medicina Duke de Singapura), a empresa americana Inovio e a canadense Medicago (parcialmente financiada pela fabricante de cigarros Philip Morris, usa uma espécie de tabaco para fazer vacinas).
Fase 3: Dezenas de milhares de pessoas participam dos testes, com uma maior diversidade de origens e uma faixa etária mais ampla, e cientistas analisam quantas são infectadas, em comparação com voluntários que receberam um placebo. Esses testes determinam se a vacina é eficaz contra o coronavírus (se ela protege, quem protege e quão bem), e farmacêuticas foram orientadas a garantir pelo menos 50% de eficácia. Nesta fase, também são revelados possíveis efeitos colaterais que podem ter passado despercebidos nas anteriores. Atualmente, há 13 vacinas na terceira fase e quatro delas – a Pfizer, AstraZeneca+Oxford, CoronaVac+Butantan e Johnson & Johnson – estão sendo testadas no Brasil. Outros exemplos são a farmacêutica Moderna (financiada pelo governo americano), a Gam-Covid-Vac (vacina do ministério da Saúde russo, que o Brasil já comprou), e a americana Novavax.
Aprovação: Reguladores de cada país revisam os resultados dos testes e decidem se aprovam ou não a vacina. Uma candidata também pode receber autorização de uso de emergência antes de obter a aprovação formal, devido à urgência da pandemia. Além disso, mesmo depois que uma vacina é licenciada, pesquisadores continuam a monitorar as pessoas que a tomam para garantir que seja segura e eficaz.