Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Açafrão, o tempero que vale ouro

Afetado pelas mudanças climáticas, ele ficou mais raro e mais caro ainda, insuflando um vasto mercado de produtos falsificados

Por Duda Gomes 2 jul 2022, 08h00

De cor inconfundível e sabor marcante, o açafrão é uma espécie de diamante azul do mundo das especiarias: a mais rara e, de longe, a mais cara de todas. Originária (provavelmente) do Irã, até hoje o maior produtor, e usada desde sempre no Oriente, difundiu-se pelo Ocidente na época dos descobrimentos, quando um mundo novo de temperos e pigmentos invadiu e conquistou a Europa. Produzir não é fácil: aproveitam-se apenas os filamentos vermelho-alaranjados e os pistilos amarelos da flor e são necessárias 150 000 flores para obter 1 quilo do condimento miraculoso que pintará de amarelo os grãos de arroz, o frango, paellas e risotos. Um amarelo que vale mais do que ouro — na cotação atual, o grama do metal custa 60 dólares e o do açafrão, 80 dólares.

Como se já não fosse suficientemente exclusivo, o produto corre o risco de se valorizar ainda mais em consequência das secas aceleradas pelo aquecimento global, que já destruíram plantações na Índia, no Afeganistão e na Espanha, o mais respeitado produtor ocidental. “Por ser uma espécie muito exigente, que precisa de condições específicas para florir, qualquer alteração climática vai impactar negativamente a produção”, explica a bióloga Mariana Reis, professora da PUC-­Rio. Pois a escassez de açafrão, além de aumentar os preços já estratosféricos, está movimentando uma indústria de falsificações com ramificações planetárias e consequências que desembocam em estreladas panelas.

A polícia espanhola anunciou recentemente a apreensão de mais de 2 toneladas de açafrão adulterado, avaliadas em 750 000 euros. A Operação Jardim investiga empresas envolvidas no comércio de gardênia, uma prima pobre que se passa pelo tesouro oriental, com margens de lucro na faixa dos 800%. No Brasil, o açafrão costuma ser confundido com cúrcuma, apelidada de açafrão-da-­terra por ter cor parecida, embora seja uma raiz de sabor bem mais amargo. Há quem, no entanto, prefira abertamente a cúrcuma para obter o “efeito amarelo”. “Tem muito açafrão falsificado no mercado internacional, por isso fico com a cúrcuma, que compro fresca de um fornecedor orgânico, e com ela produzo meu próprio pó, sabendo o que estou usando”, diz Alberto Landgraf, chef do renomado restaurante carioca Oteque. “A origem do fornecedor é o aspecto mais relevante do mercado. Só compro em lugares de extrema confiança”, diz Danio Braga, que atua no grupo Fasano, onde uma das iguarias famosas é o ossobuco com risoto de açafrão.

AMARELO INCOMPARÁVEL - Katia: preferência pelo açafrão que vem do Irã -
AMARELO INCOMPARÁVEL - Katia: preferência pelo açafrão que vem do Irã – (Rodrigo Azevedo/.)

Além de endeusado no ramo da gastronomia, o açafrão também é útil como pigmento, tem propriedades medicinais e circula com desenvoltura pelos retiros espirituais. O registro mais antigo de seu uso é em pinturas rupestres datadas de 50 000 anos, na região do atual Iraque. A flor possui comprovada ação anti-inflamatória e antioxidante, é eficiente no tratamento de doenças respiratórias e dermatológicas e, segundo pesquisas recentes, consegue frear o crescimento de algumas células cancerígenas. No Oriente Médio, o açafrão é consumido na forma de chá relaxante, para combater sintomas de depressão e ansiedade. A floração da planta que lhe dá origem é curta, de dez a vinte dias, três semanas por ano. Uma vez aberta a flor, é preciso retirar os filamentos e os pistilos imediatamente, a mão. “O mais consumido do mundo hoje em dia é o açafrão espanhol, mas acho o iraniano mais aromático”, avalia Katia Hannequim, chef e especialista em especiarias.

Embora o açafrão esteja no topo da escala de temperos escassos, outros produtos indispensáveis em culinárias diversas também atravessam um período pouco picante. Uma seca persistente desde o início do ano no norte do México está dizimando a colheita da pimenta jalapeño vermelha — e a Huy Fong Foods, da Califórnia, que consome 45 toneladas por ano em seus molhos, programa para setembro a entrega de encomendas feitas em abril. No Japão, as ondas de calor, os tufões mais intensos e as inundações estão afetando o delicado cultivo de wasabi, uma raiz que se desenvolve em terreno alagado, sob temperaturas amenas. Em Shizuoka, uma das maiores regiões produtoras, a colheita minguou 55% em uma década, péssima notícia para os restaurantes que fazem questão do wasabi de verdade — nada a ver com a pasta artificial servida em sushi bars mundo afora. Mais de cinco séculos depois de as caravelas partirem para desbravar novas rotas para o Oriente, aportarem no Novo Mundo e mudarem para sempre o gosto e a apresentação dos alimentos, o descuido com o meio ambiente vem agora ameaçar esse espetacular avanço da humanidade.

Publicado em VEJA de 6 de julho de 2022, edição nº 2796

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.