Será que a Venezuela vai dar calote em seus títulos estrangeiros? Os mercados temem que sim. Esse é o motivo pelo qual os títulos venezuelanos pagam 11 pontos porcentuais a mais que os títulos do tesouro norte-americano, 12 vezes mais que os do México, quatro vezes mais que os da Nigéria, e o dobro do que a Bolívia paga. Em maio passado, quando a Venezuela fez uma emissão privada de 5 bilhões de dólares em títulos de dez anos com um cupom de 6%, efetivamente tinha que dar um desconto de 40%, deixando-a com aproximadamente 3 bilhões de dólares. Os 2 bilhões de dólares extras que o país terá de pagar em dez anos é a remuneração que os investidores exigem para a probabilidade de inadimplência.
O governo da Venezuela precisa pagar 5,2 bilhões de dólares nos primeiros dias de outubro. Será que vai? Tem o dinheiro na mão? Será que vai levantar o dinheiro vendendo às pressas a CITGO, agora totalmente controlada pela empresa de petróleo estatal da Venezuela, PDVSA?
Outra pergunta é se a Venezuela deve pagar. Concordando, o que os governos devem fazer e o que vão fazer nem sempre são questões independentes, porque as pessoas muitas vezes não fazem o que deveriam. Mas questionamentos envolvendo o “dever pagar” envolvem algum tipo de julgamento moral que não está presente nas questões envolvendo o “irão pagar”, o que as deixam mais complexas.
Um ponto de vista defende que se você pode honrar seus compromissos, então isso é o que deveria fazer. Isso é o que a maioria dos pais ensinam a seus filhos. Mas o cálculo moral torna-se um pouco mais complicado quando você não pode honrar todos seus compromissos e tem que decidir qual vai honrar e qual deixará para trás. Até o momento, com o ex-presidente Hugo Chávez e seu sucessor, Nicolás Maduro, a Venezuela optou por pagar seus títulos estrangeiros, muitos dos quais são mantidos por venezuelanos ricos e bem-relacionados.
Yordano, um cantor popular venezuelano, provavelmente teria um conjunto de prioridades diferentes. Ele foi diagnosticado com câncer no início deste ano e teve que lançar uma campanha nas mídias sociais para comprar os medicamentos que seu tratamento necessitava. A grave escassez de medicamentos que salvam vidas na Venezuela é o resultado da inadimplência do governo de 3,5 bilhões de dólares nas faturas de importações das indústrias farmacêuticas.
Uma situação semelhante prevalece em todo o resto da economia. Os atrasos de pagamento em importações de gêneros alimentícios chegam a 2,4 bilhões de dólares, levando a uma substancial escassez de bens básicos. No setor automotivo, a inadimplência passa de 3 bilhões de dólares, levando a um colapso nos serviços de transporte, como resultado de falta de peças de reposição. A dívida com as companhias aéreas é de 3,7 bilhões de dólares, fazendo com que muitas suspendem as atividades e o serviço em geral caiu pela metade.
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Na Venezuela, os importadores devem esperar seis meses depois da chegada das mercadorias à alfândega para comprar dólares previamente autorizados e pagá-las. Mas o governo optou por dar calote também nestas obrigações, deixando os importadores com um monte de moeda local inútil. Por enquanto, o crédito de fornecedores estrangeiros e matrizes compensam a falta de acesso à moeda estrangeira; mas, devido ao atraso elevado e desvalorizações maciças, o crédito secou.
A lista de inadimplência vai longe. A Venezuela não pagou fornecedores, empreiteiros e parceiros de joint ventures da PDVSA, causando a queda de 45% nas exportações de petróleo em comparação a 1997, e a produção caiu para quase metade que o plano de 2005 havia projetado para 2012.
Além disso, o banco central da Venezuela não cumpriu sua obrigação de manter a estabilidade dos preços, quase quadruplicando o fornecimento de moeda em 24 meses, o que resultou em uma queda de 90% no valor do bolívar no mercado negro e a taxa de inflação mais alta do mundo. Para piorar, desde maio, o banco central parou de publicar a inflação e outras estatísticas.
A Venezuela opera com quatro taxas de câmbio. Não é novidade que a arbitragem na moeda tem impulsionado a Venezuela ao nível mais alto dos indicadores de corrupção global.
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Todo este caos é a consequência de um enorme déficit fiscal que está sendo financiado pela emissão de moeda fora de controle, repressão financeira e escalada da inadimplência – apesar da sorte inesperada no orçamento com o valor de um barril de petróleo sendo cotado a 100 dólares. Em vez de corrigir o problema, o governo de Maduro decidiu complementar o câmbio ineficaz e controles de preços, com medidas como fechar fronteiras para deter o contrabando e tirar as impressões digitais de compradores a fim de evitar “estocagem”. Isto constitui uma violação aos direitos mais básicos dos venezuelanos, o que a Bolívia, o Equador e a Nicarágua – três países ideologicamente alinhados que têm uma única taxa de câmbio e inflação de um dígito — conseguiram preservar.
Então, a Venezuela deve dar calote em suas obrigações internacionais? Se as autoridades adotassem políticas de bom-senso e procurassem o apoio do Fundo Monetário Internacional e outros credores multilaterais, como os países mais problemáticos tendem a fazer, eles seriam aconselhados justamente a pagar as dívidas do país. Assim, o fardo do ajuste poderia ser compartilhado com outros credores, como ocorreu na Grécia, e a economia ganharia tempo para se recuperar, particularmente à medida que os investimentos nas maiores reservas de petróleo do mundo começassem a dar frutos. Os portadores de títulos seriam sensatos ao trocar seus títulos atuais por títulos de prazo maior que se beneficiariam do retomada econômica.
Nada disso vai acontecer no governo de Maduro, que carece de capacidade e capital político, e vontade para mover-se nessa direção. Mas o fato de que sua administração optou pelo calote em 30 milhões de venezuelanos e cumprir com as obrigações em Wall Street não é um sinal de sua retidão moral. É um sinal de sua falência moral.
Ricardo Hausmann é diretor do Centro de Desenvolvimento Internacional e Professor de Desenvolvimento Econômico na F. Kennedy School of Government da Universidade de Harvard, e é ex-Ministro do Planejamento da Venezuela. Miguel Angel Santos é pesquisador sênior do Centro de Desenvolvimento Internacional da Universidade de Harvard.
(Tradução: Roseli Honório)
© Project Syndicate 2014