Um homem debaixo de uma árvore sem folhas que ocupa toda a paisagem toca uma safona triste. A música para porque logo adiante vem o funeral de um recém-nascido. Todos que moram naquela comunidade encravada no sertão nordestino acompanham o cortejo. Aquele é um lugar onde não há mais do que meia dúzia de casas, um bar, um aparelho de tevê comunitário e um telefone público. Ali vivem três mulheres: Querência (Marcelia Cartaxo), ao que parece a mãe do bebê morto, Alfonsina (Débora Ingrid) e Das Dores (Zezita Matos). Elas são as personagens centrais de A História da Eternidade (Brasil, 2014), primeiro longa do diretor e roteirista pernambucano Camilo Cavalcante, vencedor de cinco prêmios no Festival de Paulínia (SP) deste ano, entre eles, o de melhor filme.
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Ao apresentar o longa na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo na última sexta-feira, Cavalcante o descreveu como uma fábula poética sobre o amor. De fato, linguagem poética é o que não falta ao filme. Querência, uma mulher de meia-idade envelhecida pela vida, entrega-se ao luto enquanto Aderaldo (Leonardo França), um sanfoneiro cego, toca em frente à sua casa na tentativa de convencê-la a lhe dar uma chance. É ela, com seu nome tão simbólico quem melhor representa as possibilidades do amor. Entre ela e o sanfoneiro, o amor pode acontecer.
Para as outras duas, o destino é bem mais fatalista. Prestes a completar 15 anos, Alfosina sonha em conhecer o mar, mas está longe de ele deixar de ser apenas um mosaico de recortes na parede. Enquanto devaneia, ela prepara o almoço e o jantar para o pai, Nataniel (Claudio Jaborandy), um homem bastante severo, e os quatro irmãos. O tio Joãozinho (Irandhir Santos) é o único que alimenta os sonhos da garota. Visto como louco e vagabundo pelo irmão Nataniel, Joãozinho parece não ter a alma distante daquele lugar. Das Dores, sempre por perto para ajudar os vizinhos — inclusive Joãozinho, quando tem suas crises epilépticas –, é uma senhora que entoa o rosário com os vizinhos na igreja. A chegada de seu neto Geraldo (Maxwell Nascimento), vindo de São Paulo de maneira suspeita, transforma-se num tormento para a sua retidão religiosa, já que acende um desejo que a faz acreditar merecer castigo.
Com duração de duas horas, o filme está dividido em três partes com os curiosos títulos de Pé de Galinha, Pé de Bode e Pé de Urubu – pé no sentido de árvore. Na maioria do tempo, a câmera está parada, o que parece aumentar o impacto de um plano-sequência de 360 graus. Na verdade, há um segundo, mas o melhor deles é protagonizado por Irandhir Santos ao som de Fala, música da década de 1970 do grupo Secos & Molhados. Visto como esquisito para os padrões locais, seu personagem mostra o quão presas aquelas pessoas estão e como as suas visões de mundo são limitadas.
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Além da bela maneira escolhida por Cavalcante para contar a história, com um enredo bem amarrado, o diretor de fotografia Beto Martins caprichou nas imagens. A inspiração, segundo disse em entrevistas, foi nas cores dos quadros do pintor italiano Caravaggio, do século XVI. Em especial as cenas noturnas, com as casas iluminadas por uma luz elétrica fraca ou por lamparinas, lembram telas. O filme ainda tem as excelentes atuações das três atrizes, as experientes Marcelia Cartaxo e Zezita Matos e a estreante Débora Ingrid, e do já conhecido e merecidamente consagrado ator Irandhir Santos. Com todos esses acertos, A História da Eternidade é uma boa surpresa entre os filmes brasileiros deste ano.
Serviço:
Neste domingo, às 15h – Cinesesc
Rua Augusta, 2075 – Cerqueira César Tel: (0/xx/11) 3087-0500
Dia 28/10, às 19h50 – Reserva Cultural 1
Avenida Paulista, 900 Tel: (0/xx/11) 3287-3529