Winston Churchill famosamente disse que “se Hitler invadisse o inferno, eu faria pelo menos uma menção positiva ao demo na Câmara dos Comuns”.
A tirada está sendo relembrada agora que os Estados Unidos, tendo decidido não comprar mais petróleo, gás e carvão da Rússia, procuram fornecedores substitutos.
Antes mesmo do anúncio, enviados da Casa Branca chefiados por Juan González, principal assessor do governo Biden para a América Latina, já tinham tido uma reunião “cordial” com Nicolás Maduro no Palácio de Miraflores.
Também foi cogitada uma visita do próprio Joe Biden à Arábia Saudita para convencer o terceiro maior produtor de petróleo do mundo (depois dos Estados Unidos e da própria Rússia) a aumentar a extração para compensar os cerca de cinco milhões de barris russos que entram por dia no mercado internacional.
A carta Irã entrou no jogo, com um novo acordo nuclear que liberaria a exportação de petróleo.
A dança com os ditadores evidentemente provoca reações negativas entre a oposição venezuelana. Já que não dá para falar em oposição saudita, partiu mais de jornais de esquerda, como o Guardian, o repúdio ao perdão implícito ao príncipe Mohammed Bin Salman por mandar matar e esquartejar o colunista Jamal Khashoggi.
Entre deixar que o petróleo chegue a 300 dólares – como ameaçou o vice-primeiro-ministro russo Alexander Novak – e fazer negócio com regimes impalatáveis num momento de extrema necessidade, como o provocado por Vladimir Putin ao invadir a Ucrânia, a opção não poderia ser mais clara.
A abertura americana provoca várias questões. A primeira delas: quanto Maduro vai cobrar para trair seu grande amigo Putin?
O preço obviamente envolve as sanções americanas contra os principais elementos do regime venezuelano.
Ficaremos sabendo nos próximos dias até onde os Estados Unidos estão dispostos a ir. Por enquanto, Maduro insinuou: “Estavam lá as bandeiras dos Estados Unidos e da Venezuela, muito bonitas as bandeiras juntas”. E mandou soltar dois executivos petrolíferos americanos, presos sob falsas acusações, um gesto de quem quer refazer a relação.
Outra dúvida: a Venezuela tem realmente petróleo para vender em quantidades significativas? A PDVSA comemorou em dezembro passado quando a produção ultrapassou um milhão de barris diários (quase três vezes menor do que a do Brasil). Mas fontes do mercado levantaram a hipótese de que os venezuelanos estejam simplesmente mentindo.
Os Estados Unidos importam – ou importavam – da Rússia 8% do seu consumo de petróleo, uma fatia significativa mas não vital, principalmente se Biden liberasse o fracking, ou a extração do petróleo betuminoso através da fragmentação com jatos d’água dos depósitos rochosos em que o solo americano é fértil.
Biden teria que comprar uma briga com a ala verde de seu próprio partido e talvez ache menos complicado lidar com gente da laia de Maduro.
Para os países europeus, a substituição é muito mais difícil: a Rússia fornece 30% de seu consumo de petróleo e 40% do de gás, chegando a 55% no caso da Alemanha.
“O que parecia impossível de fazer na semana passada tornou-se tornou-se impossível de parar esta semana”, escreveu o colunista econômico Ambrose Evans-Pritchard, referindo-se à revolta da opinião pública diante das abominações na Ucrânia e ao consenso, entre a liderança política, de que Vladimir Putin não pode ganhar essa.
Quem vai sofrer mais, os russos ou os países importadores?
As apostas são enormes. Evans-Pritchard acha que “será doloroso, mas tecnicamente e economicamente factível” para os países europeus, em especial porque o inverno está acabando e os Estados Unidos aumentaram o fornecimento de gás natural liquefeito.
Pode ser uma avaliação otimista demais e existe sempre o fator China, o gigante mais do que disposto a tomar o lugar dos importadores ocidentais.
Uma mudança dessas dimensões não pode ser feita num passe de mágica. A gama de fatores envolvidos é enorme, inclusive os acontecimentos no próprio teatro de operações: quanto mais durar a resistência ucraniana, mais aumentará a violência dos invasores e o consequente repúdio da opinião pública.
Putin ainda tem o domínio da “torneira do gás” e, se entrar no modo suicida, pode infligir danos gravíssimos a países que se colocaram na linha de frente da resistência, como a Alemanha ou a Polônia.
Churchill tinha razão ao defender a aliança com Stálin, em nome do combate ao nazismo?
Por causa dessa aliança, a Europa Ocidental foi liberada, pôde reconstituir o sistema democrático e entrar num caminho de prosperidade sem paralelos na história da humanidade. A Europa Oriental foi entregue como butim à União Soviética, uma servidão que só acabou nos anos noventa.
É a perda desses satélites, juntamente com as repúblicas soviéticas que se tornaram independentes, que Vladimir Putin quer compensar com a invasão da Ucrânia – e talvez a Moldávia, entre os elos mais fracos.
A roda da história não para e o fato de que o ex-motorista de ônibus Nicolás Maduro possa fazer uma pequena parte dela, traindo um aliado como Putin, indica que saber para que lado ela está girando continua a fazer parte da caixa de ferramentas do poder.