Relatório sobre eleição expõe fragilidades das chefias militares
Documento mostra necessidade de revisão da estrutura e comprova debilidades institucionais, como a do papel de militar como "moderador" na política
É singular o relatório divulgado ontem pelo ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, sobre o sistema eletrônico de votação.
Na essência, atesta a necessidade de mudanças fundamentais nas Forças Armadas.
Demonstra a premência na revisão da formação educacional, da estrutura e dos critérios de ascensão na carreira militar.
Comprova, sobretudo, a permanência de fragilidades institucionais, abstraídas pelo poder civil desde a redemocratização, por atribuir à caserna o papel de “moderador” na política interna.
O ministro da Defesa apresentou ao Tribunal Superior Eleitoral um relatório de 63 páginas (65% são de anexos) sobre as urnas eletrônica e os resultados eleitorais.
O texto é quase um épico do negativismo: a palavra “não” é repetida 49 vezes em 22 primeiras páginas antes de uma afirmativa — a mesma de auditorias já realizadas por organismos independentes nacionais e estrangeiros: estão corretos os resultados da eleição anunciados pelo TSE.
O documento seria irrelevante, não fosse o contexto político em que foi produzido, o da tentativa de amálgama dos interesses das Forças Armadas, instituições de Estado, com os de um governo que se autodestruiu em desvarios extremistas.
A cronologia é reveladora. O Ministério da Defesa precisou de oito meses para montar a “Equipe das Forças Armadas de Fiscalização e Auditoria do Sistema Eletrônico de Votação”.
A Justiça Eleitoral divulgou a listagem das entidades na terça-feira 14 de dezembro do ano passado. A “equipe” da Defesa foi criada na segunda-feira 2 do último agosto e trabalhou até ontem.
Nesse período, o ministério foi ocupado pelos generais aposentados Walter Braga Netto e Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, que o sucedeu no último 1º de abril.
Eles são representantes de uma turma de oficiais educada no ciclo da ditadura que viu no antipetismo a oportunidade para abrir os quartéis ao ativismo, a bordo de um projeto de poder.
Neste novembro, completam-se oito anos de uma inédita permissão da hierarquia militar para o então deputado federal Jair Bolsonaro fazer um comício de candidato à Presidência da República durante a formatura de cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras. Ele repetiu o comício na Aman anualmente, até vencer a eleição presidencial.
Bolsonaro ganhou em 2018 tendo como vice Hamilton Mourão, ex-comandante militar do Sul. Agora, perdeu com o candidato a vice Braga Netto, que chefiou o Estado-Maior do Exército até assumir a Casa Civil, em fevereiro de 2020.
Os militares nunca estiveram longe da política. Desde a derrubada da monarquia, em 1889, as Forças Armadas deram seis golpes (dois em 1891, outros em 1930, 1937, 1945 e 1964, sem contar as rebeliões ou quarteladas).
Reivindicaram, sucessivamente, a posição de “fiadores dos poderes constitucionais”. E, no silêncio obsequioso do poder civil, estabeleceram-se no papel de responsáveis pela “lei e ordem” em cinco das sete constituições da República, a última escrita no epílogo de duas décadas de ditadura.
Por ação ou omissão, parte dos chefes militares da última década ajudou Bolsonaro a construir um governo de incompetência na crise da pandemia, com mais 780 mil mortos, cujos reflexos ficaram evidentes na derrota eleitoral do mês passado.
Alguns se engajaram no ideário extremista para corrosão do regime democrático. Atravessaram os últimos 18 meses ajudando na semeadura de falsidades sobre o processo eletrônico de votação.
Uma das peculiaridades do relatório sobre os resultados eleitorais é a esgrima com o clássico argumento da ignorância, um dos prediletos de Bolsonaro — do tipo, se ninguém foi acusado de corrupção, logo, não há corrupção no governo.
A Defesa concluiu que estão corretos os resultados da eleição anunciados pelo TSE, mas, acrescentou, isso não significa que o sistema eletrônico de votação “está isento de um eventual código malicioso que possa alterar seu funcionamento”.
Na vida real, a mensagem assinada pelo ministro Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira ao TSE equivale ao reconhecimento de que a Terra é redonda, como dizem por aí, porém, com uma ressalva sobre a possibilidade de dúvidas.