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Amos Gitaï: ‘O fundamentalismo é prejudicial para Israel e Palestina’

Cineasta israelense fala a VEJA sobre o conflito, condena ataques do Hamas e diz que ações de Netanyahu aumentaram a tensão entre judeus e árabes na região

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 2 nov 2023, 18h17 - Publicado em 2 nov 2023, 11h57

No dia 11 de outubro de 1973, na guerra de Yom Kippur – conflito árabe-israelense mais sangrento até então –, Amos Gitaï viveu um aniversário traumático. Na data em que completava 23 anos, o jovem soldado israelense encarou a morte quando seu helicóptero foi abatido por um míssil inimigo. A terrível experiência lhe deixou não só feridas físicas e emocionais: revoltado diante da barbárie, Gitaï desenvolveu o olhar crítico aguçado, mas também sensível, que fez dele um cineasta aclamado mundialmente. Hoje, aos 73, ele se impõe como uma voz incontornável sobre os conflitos no Oriente Médio, tema recorrente de seus filmes, entre eles O Último Dia de Yitzhak Rabin, que entrou em cartaz no Brasil nessa quinta-feira, 2. Misturando cenas documentais e dramatização, Gitaï narra os bastidores do assassinato do ex-primeiro-ministro que ganhou o Nobel da Paz por seu envolvimento no Acordo de Oslo, pacto que vislumbrava a sonhada conciliação entre seu país e os vizinhos palestinos. Vivendo entre França e Israel, Gitaï estava em Paris quando conversou via videoconferência com a reportagem de VEJA. Abatido diante do novo conflito gerado pelos ataques do Hamas a Israel, ele concedeu a entrevista enquanto se preparava para integrar a comissão diplomática do presidente Emmanuel Macron, que desembarcou em Telaviv nesta semana. Confira:

Como o senhor recebeu a notícia sobre os ataques covardes do Hamas a Israel no dia 7 de outubro? Foi um baque, me senti péssimo. O que vimos nesse ataque foi a selvageria do Hamas, que feriu não só Israel, mas afetou a causa legítima dos palestinos que buscam uma independência soberana. Nada justifica esse grau de violência, o estupro de mulheres, a morte de crianças na frente dos pais. Nesses kibbutzim que foram atacados, estavam também ativistas pela paz, pessoas que cruzavam a fronteira para levar crianças palestinas a hospitais israelenses. Esses ativistas foram massacrados ou sequestrados, como a canadense-israelense Vivian Silver, de 74 anos. Logo, o que o Hamas fez só vai desencadear mais mortes e mais guerras para o ciclo de sofrimento que afeta o Oriente Médio.

O conflito atual remete à terrível guerra de Yom Kippur, de 1973, desencadeada após um ataque-surpresa árabe que Israel falhou em prever. O senhor lutou naquela guerra e sobreviveu a um ataque. Como a experiência o marcou? Eu era um estudante de arquitetura, tinha 23 anos e atuava no grupo de resgate, levando pessoas feridas do campo de batalha para hospitais, retirando soldados de tanques em chamas, transportando corpos. No quinto dia do conflito, o helicóptero em que eu estava foi atingido por um míssil. Meu copiloto morreu na minha frente. Os demais ficaram gravemente feridos. Eu fui atingido nas costas. Foi uma experiência que me deixou marcas profundas. Eu vi o preço terrível da guerra. Aquele foi o momento em que eu decidi deixar a arquitetura para fazer filmes.

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Por quê? Yom Kippur foi a guerra que mostrou a fragilidade das nossas existências, e percebi que queria contar essas histórias. A arte preserva ideias e dá continuidade ao diálogo através da história. Dou o exemplo de Picasso, que lidou com o choque da guerra pintando o quadro Guernica. Picasso não ganhou a guerra, Franco ganhou, mas foi Picasso quem cravou a imagem de destruição na memória humana.

A guerra de Yom Kippur acabou de completar cinquenta anos. Como compara aquele contexto histórico com o momento atual de Israel sob o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu? Importante ressaltar que a guerra de Yom Kippur foi entre os exércitos da Síria e do Egito contra militares de Israel. Desta vez foi muito mais dramático, pois civis de todas as idades foram atacados brutalmente. E vejo que a situação política hoje em dia é bem pior. Israel tem um governo corrupto, ultranacionalista e de discurso messiânico, que perdeu o senso de que está em uma zona hostil. As escolhas políticas feitas por Netanyahu foram perigosas e extremamente provocativas para aquela região. Vemos agora, nesse conflito, o resultado de algumas de suas ações.

Como assim? Recentemente, eu falei sobre isso com um jornalista italiano e ele respondeu que seu país também está sob um governo parecido com o de Israel [Giorgia Meloni, primeira-ministra da Itália, é de um partido conservador de ultradireita]. Eu respondi: “Mas quem são seus vizinhos?” A Itália está entre a França e a Suíça. A relação de Israel com seus vizinhos é delicada. Qualquer provocação envolvendo o domínio de um local sagrado para judeus e muçulmanos, como a Tumba de José ou o Monte do Templo, desperta o tigre do fundamentalismo fanático.

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No que Netanyahu se equivoca? Seu governo criou atritos e divisões na sociedade israelense e o Hamas está de forma cínica tentando tirar vantagem disso. É uma administração que governa a partir do confronto, que constantemente manipula judeus contra árabes, religiosos contra secularistas, sefarditas [judeus de origem portuguesa e espanhola] contra asquenazes [judeus originários do Leste Europeu]. Tudo pelo simples propósito de manter o senhor Netanyahu no poder. É um governo que luta contra o próprio país e o enfraquece. Por isso tivemos este ano uma enorme revolta popular dos israelenses, que foram às ruas contra as propostas de reforma judicial de Netanyahu, que tentou limitar a democracia local.

O senhor parece pouco esperançoso em relação a essa guerra e às políticas adotadas até agora. Ainda acredita que haverá paz no Oriente Médio? Certa vez, entrevistei Bassam Shaka, prefeito de Nablus, uma importante cidade palestina na Cisjordânia, e lhe fiz a mesma pergunta. Eu questionei: “O senhor é um otimista ou um pessimista sobre a paz no Oriente Médio?”. Gostei muito da resposta dele, que disse: “ser pessimista é um luxo o qual eu não posso me dar. Ser pessimista seria nosso fim. Então, temos de manter a esperança mesmo em momentos sombrios”. Eu concordo. Temos de manter a esperança, apesar de ser cada vez mais difícil.

As propostas de paz para a região se dividem entre a criação de um Estado Palestino e a absorção dos árabes na sociedade israelense. Convivendo de perto com os dois lados, qual caminho acha que pode funcionar? Olha, o que posso dizer é que sou um arquiteto de formação: logo, gosto de construir pontes e não queimá-las. Tento deixar isso claro com meus filmes, é a maneira que eu posso colaborar e mostrar que há a possibilidade de convivência pacífica.

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Pode dar um exemplo? Recentemente, fiz uma peça chamada A Casa, encenada em Paris, com israelenses, palestinos e iranianos trabalhando juntos. Todas as nacionalidades que lutam no Oriente Médio estavam no meu palco, fazendo arte. Então, acredito no poder da arte de trazer consciência para as pessoas e de oferecer saídas que não sejam a guerra e a morte.

Seu filme O Último Dia de Yitzhak Rabin expõe as rachaduras dramáticas na sociedade israelense nos anos 1990. Como vê o legado do ex-primeiro-ministro que pregava a paz e por isso foi assassinado por um compatriota, um jovem judeu fundamentalista? Eu acompanhei Rabin em viagens na época para um documentário e admirava sua postura firme e sábia, apesar das dificuldades. Vejo que a diplomacia é a saída para avançarmos na questão do Oriente Médio, assim como ele tentou ao trabalhar no Acordo de Paz de Oslo. Rabin era muito lúcido sobre essa questão, ele sabia que existiam perigos ao tentar um acordo de paz, mas estava determinado a conseguir um – o que, infelizmente, lhe custou a vida.

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Acha que ele teria sido bem-sucedido nessa missão se não tivesse morrido? Talvez não, mas ele trabalhou pelo que acreditava. Se Israel quer uma vida segura em uma região perigosa, então precisa descobrir um novo modus vivendi para se manter ali.

Mas como aplacar o extremismo religioso em um terreno tão minado? O fundamentalismo é prejudicial tanto em Israel quanto na Palestina, a exemplo do próprio Hamas, assim como em diferentes lugares do mundo. Para resolver conflitos, é preciso ser analítico e não místico. Israel é um projeto político e não religioso. O fato de que o atual governo deu tanto poder para partidos religiosos é uma tragédia.

Em seu filme, o senhor ressalta que o discurso de ódio e as mentiras em torno de Yitzhak Rabin, que foi atrelado ao nazismo, foram elementos que culminaram em seu assassinato. Em tempos de redes sociais, tem medo que esse recurso de desinformação piore o conflito atual? Com certeza, pois as redes sociais amplificam tudo e dificultam o entendimento sobre o que é verdade e o que é mentira. Mais importante ainda, elas interferem no desenvolvimento do pensamento crítico, que é algo obrigatório e necessário neste momento.

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O senhor disse certa vez que Israel já teve todas as chances de fazer acordos de paz, e não o fez. A quem interessa manter essa animosidade por tanto tempo? A ninguém, na verdade. Ninguém ganha nada com isso. Guerra só traz morte e destruição e desperdiça nossos recursos. São tempos sombrios e ninguém sabe como a situação vai terminar.

A morte de Rabin foi um sinal da ascensão da extrema-direita em Israel? Não penso assim, pois esse é um movimento global. No Brasil, vocês tiveram o Jair Bolsonaro, que por sorte não está mais no poder – e espero que não volte mais. De Donald Trump a Putin, a lista de líderes extremistas atuais é enorme. Acho que o mundo não está sendo governado por gente muito brilhante. O desejo de dar passos para trás é algo que está em todos os lugares. Por mim, eles todos deveriam renunciar e dar lugar para pessoas moderadas e inteligentes.

Uma utopia difícil de se alcançar, não é? Existem muitas pessoas boas no mundo, elas só não estão conseguindo se sobressair diante desses outros. Então, temos de almejar passar por mudanças assim no mundo todo e achar um modo de viver em paz com os diferentes. É uma questão histórica. Os espanhóis e os portugueses conquistaram a América Latina destruindo os indígenas. Guerras religiosas assolaram a Europa por 100 anos. Tivemos a I e a II Guerra Mundial. Antes que seja tarde demais, a humanidade precisa encontrar um modo para a convivência pacífica na Terra.

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