Se você der um Google em “cyberbullying”, encontrará definições como a do Conselho Nacional de Prevenção contra Crimes dos Estados Unidos: “o processo de usar a internet, celulares ou outros dispositivos para enviar posts, com textos ou imagens, com o intuito de machucar ou humilhar outra pessoa”. Só que verbetes desse tipo, de dicionários e afins, não ajudam, de fato, a compreender o fenômeno. O cyberbullying por muito tempo foi tratado com desdém – e ainda é, por alguns. Quem nunca ouviu argumentações como “mas ela pediu por isso, pois topou a foto”, quando se debatem casos como os de revenge porn, nos quais um criminoso (não há outra forma de ser chamado) vaza fotos íntimas (normalmente, de um(a) ex-amante) com o objetivo de tornar embaraçosa a vida alheia? Também há aqueles que – acredite! – defendem que o ódio virtual que valentões conectados espalham contra seus alvos, principalmente quando ambos os lados ainda estão na fase da adolescência, seria algo, digamos, “comum”. Já ouvi muito (inclusive, de ditos experts): “Não é diferente de quando, antes da era on-line, estudantes se zoavam na escola (o bullying ‘costumeiro’)”. Bobagem. Repito, e acrescento: bobagem irresponsável que acaba por alimentar e defender um comportamento que pode (literalmente) acabar com a vida de inocentes. O cyberbullying é um fenômeno de contornos trágicos, que tem impactado a sociedade, tanto no âmbito coletivo, quanto no individual / familiar. De uma forma nunca antes equiparada por outros tipos de agressões, como as “zoeiras” do colégio.
Quando eu tinha meus 12 anos, eu era um garoto nerd, típico alvo de bullying na escola. As humilhações eram várias: tirar meus óculos, zoar os pelos que começavam a crescer em meu rosto, passar rasteiras no intervalo de aulas, se agrupar com outros garotos para tirar minha camiseta e me jogar no lixo do pátio do colégio… enfim, era enorme a criatividade dos valentões. Entretanto, ainda era um sofrimento estritamente individual. Minha reação inicial, naquela idade, foi me distanciar ao máximo dos agressores – na verdade, por um tempo, de outros jovens, em geral –, isolar-me em meu quarto, com meu videogame e meu PC (com o qual, admito, realizava traquinagens, hackeando o computador daqueles que me enchiam na vida real), e distrair-me com atividades que eu podia fazer sozinho, em busca de um ponto de equilíbrio. Depois de um período apelando a essa tática de solidão, retornei ao mundo, mais preparado e balanceado, e enfrentei os bullies.
Dei a volta por cima. Encarei o problema sozinho e tive a opção de apagá-lo da memória; não só da minha, mas também da coletiva. Naquela época (anos 90), ninguém poderia rever, em meu Facebook, Twitter, ou perfil no YouTube, o mal que cheguei a sofrer. Um que, para um adulto, pouco significado tem. Mas, para a criança que fui, era devastador.
Essa é uma das maiores gravidades do cyberbullying. Hoje, o assédio não é mais restrito a um canto de um corredor no colégio. Ele se tornou público e impossível de ser deletado. Fica na memória, para sempre, circulando pelas redes sociais.
Tome como exemplo uma história relatada em reportagem recente de VEJA acerca de como os haters têm tomado a internet de assalto. No caso, a estudante L.P. (menor de idade, por isso as siglas), de 15 anos, admitiu ter promovido uma campanha de cyberbullying contra uma menina que era seu desafeto no colégio. L.P. se uniu a outras quatro meninas para espalhar mentiras, criticar o corte de cabelo, humilhar seu alvo. O comportamento agressivo começou na escola, mas logo migrou para o ambiente digital. Foi na rede que tomou dimensões extremamente danosas. A garota que sofreu os ataques se viu isolada, e teve de mudar de escola. A agressora demorou a notar o dano que causava. Quando finalmente se tocou do mal que havia feito à colega, recorreu a uma psiquiatra para lidar com a situação; e, no fim, também ela escolheu pedir transferência de colégio. Tanto quem atacou, quando quem se viu atacado, sofreu as consequências do cyberbullying.
Há, ainda, situações mais extremas. Como quando, em 2010, o estudante americano Tyler Clementi, de 18 anos, cometeu suicídio após seu colega de quarto na faculdade ter transmitido, ao vivo, pela internet, um encontro sexual que ele teve com outro garoto. No Canadá, em 2010, outra adolescente, Amanda Todd, de 15 anos, também protagonizou tragédia similar: matou-se, depois de ler uma carta de despedida no YouTube, por efeito da depressão causada por um hater que vazou fotos dela nua.
Segundo uma pesquisa recente, 75% dos jovens americanos já se depararam com casos de cyberbullying. Enquanto 30% relataram ter sido alvo das agressões virtuais, apenas 12,5% admitem ter praticado os ataques (um número evidentemente subestimado, pois se acredita que a maioria não assume o crime). O que piora ainda mais a situação é que as vítimas não deixam de acessar as redes sociais – aliás, quase 90% desses mesmos adolescentes têm perfis no Facebook; e é de se imaginar que uma grande parcela dos outros 10% deve ter conta no Twitter, no YouTube, ou em alguma outra plataforma similar. Eles não se afastam, como poderia ser de se esperar, da vida on-line. Pelo contrário, tendem a viciar nesses sites, isolando-se cada vez mais, e muitas vezes entrando em um triste ciclo de ódio a si mesmo.
É como me disse, certa vez, a psicóloga e socióloga americana Sherry Turkle, professora do conceituado MIT, e autora do livro Alone Together (Sozinho Juntos), referência nesse tema: “As mídias sociais passam uma impressão ilusória de que estamos sempre acompanhados, respaldados. Então, mesmo quando um jovem sofre nesse ambiente, ele acha que só recorrendo a esse mesmo espaço é que conseguirá se livrar de seus problemas. No fim, acaba por se isolar cada vez mais do mundo real”.
Essa síndrome é o que faz nascer atrocidades como o jogo Baleia Azul. Aquele no qual, por meio de grupos digitais, seja no WhatsApp ou no Facebook, promovem-se uma série de provas a adolescentes; nas quais eles têm de realizar (e filmar) uma série de mutilações, que culminariam no suicídio. Vale frisar que ninguém sabe a origem certa dessa atrocidade; nem se ela existe, de fato, ou se virou um daqueles mitos urbanos que são seguidos por jovens perturbados. O que se sabe é que a internet não só faz nascer esses fenômenos perigosos, como os agrava. Vide, por exemplo, um estudo detalhado em reportagem de VEJA desta semana: segundo ele, o uso das novas tecnologias prejudica a saúde mental de adolescentes, agravando distúrbios que já possuíam. Em outras palavras, quanto mais eles mergulham no mar virtual, mais difícil é sair dele (e, pior, sair dele são e salvo).
Nesses contornos, não fica exagerado o cenário pintado pela protagonista da série popular e polêmica 13 Reasons Why (13 razões para), do Netflix. Nela, em determinado episódio, a protagonista, uma adolescente, aponta como um dos motivos para se suicidar a forma como ela teve sua intimidade desnudada em Facebook, Snapchat, Instagram, por meio de uma prática usual de cyberbullying. Não muito longe dos casos reais relatados neste post.
A internet, em especial para a geração que já nasceu com ela, tem se assemelhado cada vez mais a uma distopia no estilo 1984 – o clássico romance de ficção científica, do britânico George Orwell (1903-1950), que apresentou, por exemplo, o conceito de Big Brother. Chamam a atenção dois elementos da ficção que hoje podem ser vistos no Facebook. O primeiro era o chamado “dois minutos de ódio”. Tratava-se, em 1984, de um ritual no qual os habitantes dessa realidade maluca destilavam sua raiva, xingando e vilipendiando os alvos do regime. Numa lógica que se parece demais – e isso é aterrorizando – com o cyberbullying. O segundo conceito desenhado em 1984, e que tem muito a ver com esse universo de Facebook e afins, é o do “duplipensamento”. O termo expressa a convivência, em espantosa harmonia, de duas ideias conflitantes. No cenário orwelliano, o duplipensamento era uma das formas de controle social executadas pela autocracia. No caso do Facebook, é perfeito para descrever como, ao mesmo tempo em que os jovens se sentem mais próximos de gente que pensa como eles, que os defende, quando acessam as redes; eles também, nessas mesmas redes, têm contato constante com o ódio (cada vez mais direcionado a tudo e a todos).
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Com isso, temos nos visto rodeados por um mundo que assustadoramente parece ter sido extraído de um episódio – daqueles de dar calafrio – da ótima (e polêmica, também) série Black Mirror, do Netflix. O que é preciso se perguntar: como queremos viver – e sobreviver – nessa nascente distopia digital? Destilando raiva, mentiras, fofocas, ódio; ou combatendo-os?
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