É preciso admitir o fracasso brasileiro diante da pandemia
Em seis meses de pandemia, o país ultrapassou os 120 mil óbitos, institucionalizou a humilhação com risco de contágio e fez do vírus um cabo eleitoral
O Brasil não precisa de catástrofes naturais para ter grandes tragédias. O grande tsunami de 2004, a maior calamidade desse tipo neste século, matou 126.915 pessoas na Indonésia, um país que tinha, à época, 220 milhões de habitantes. Aqui, a Covid-19 ceifou, em seis meses, 122.596 vidas, entre 211 milhões de brasileiros, o total da população estimado pelo IBGE e divulgado há uma semana.
Os efeitos do tsunami na Ásia eram inevitáveis. A pandemia, que continuará matando por um bom tempo, poderia ter sido amenizada com boa gestão de recursos, disseminação de informações corretas de prevenção e ações exemplares por parte dos que dividem as responsabilidades pela saúde pública. No entanto, a politização do tema, o desestruturado sistema de atendimento à população e a incapacidade de manter restrições de circulação com firmeza produziram um cenário exatamente inverso.
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Clique e AssineDécimo colocado no infame ranking mundial de mortes por habitantes — a poucos passos de ultrapassar vários países em que a pandemia está sob controle e de somar o mesmo total de óbitos registrado em todos eles juntos —, o Brasil caminha para consolidar o segundo posto em fatalidades acumuladas a cada 24 horas, com mais casos que os Estados Unidos, cuja população é 30% maior. Só a Índia, com 1,3 bilhão de habitantes, registrou mais óbitos do que o Brasil entre os dias 31 de agosto e 1º de setembro.
O círculo em torno do presidente da República, dentro do qual o vírus prosperou como infecção respiratória e mental, conseguiu piorar o risco de contaminação criando um auxílio emergencial que levou para filas humilhantes, sob sol ou chuva, milhões de pessoas. Empolgado com a popularidade comprada com a distribuição de dinheiro, quer agora fazer desse o seu método de campanha à reeleição, ameaçando programas sociais consolidados e eficientes, considerando impostos que aumentariam os níveis de injustiça tributária e cogitando mirabolâncias financeiras que só fazem sentido para o ministro da Economia.
Nos governos estaduais, a dissecação dos números mostra que ninguém teve sucesso na contenção da epidemia. Uns, como os do Rio de Janeiro, chafurdaram nas relações inexplicáveis com entidades privadas, chegando ao cúmulo de criar hospitais que nunca atenderam a um único paciente, mas custaram uma fortuna aos contribuintes.
Outros, como os do Ceará, do Espírito Santo, do Amazonas, do Pará e de Roraima alcançaram taxas de mortalidade comparáveis às piores do mundo. E mesmo onde o dinheiro seria um problema menor, como São Paulo, verifica-se um quadro estatístico que só serve para mostrar a imensa desigualdade encravada também nas metrópoles.
Enquanto o governador e o prefeito da capital paulista foram se convertendo em paladinos da reabertura do comércio, os índices de disseminação da doença continuaram evoluindo. Caberá à cidade o desonroso privilégio de alcançar em algumas semanas a cifra de 1 óbito para cada mil habitantes, com dolorosa concentração de vítimas nas áreas mais pobres, atendidas pelo pior transporte, entre outras deficiências de serviços.
Não é suficiente o argumento de que o contágio não poderia ser detido, mas apenas alongado no tempo, já que outro países, tanto entre mais ricos quanto entre mais pobres, conseguiram conter a epidemia em parâmetros bem menos alarmantes. E não há notícia de que autoridades sanitárias brasileiras tenham ido buscar nesses lugares ações exemplares para seguir.
Na verdade, não há disposição, em nenhuma instância, para admitir a mais cristalina das evidências, que permitiria ao país iniciar um debate franco sobre as razões de tamanha catástrofe: o país fracassou de alto a baixo no enfrentamento da crise sanitária. Pelo contrário, dentro de algum tempo, quando a vacina tiver chegado ou quando não houver mais brasileiro a ser contagiado, todos se apresentarão como heróis da pandemia.