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Caviar dos pobres

O sabor antigo e forte da sardella, um antepasto que o Brasil aprendeu a saborear em São Paulo, com os imigrantes calabreses

Por J.A. Dias Lopes 4 dez 2018, 18h48

Antiga, cremosa, aromática e picante, a sardella é uma das  receitas mais deliciosas que os imigrantes italianos adaptaram em São Paulo, entre os anos de 1876 e 1920,  quando chegaram à cidade. Sua tradição de consumo veio com os cerca de 100 mil calabreses instalados sobretudo no Bixiga, um bairro de fato, pois não existe na divisão administrativa da cidade. Corresponde à região localizada entre as ruas Major Diogo, Avenida Nove de Julho, Rua Sílvia e Avenida Brigadeiro Luís Antônio, no distrito da Bela Vista. Ali os calabreses ergueram até uma igreja em homenagem a Nossa Senhora Achiropita, sua padroeira, cuja festa anual em agosto serve de pretexto para uma comilança coletiva.

Saboreia-se a sardella como antepasto, espalmada sobre fatias de pão italiano, tostado ou não. Pode-se acrescentar cebola picada ou em rodelas. Há quem a dilua em azeite quente e, nesse caso, converte-a em molho de macarrão, aplicado puro na massa ou harmonizado com molho de tomate. Outra preparação com a qual combina: o ovo frito. Começou a ser preparada no Brasil nas casas dos calabreses, depois passou a compor o cardápio das cantinas – o nome paulistano dos restaurantes populares de cozinha italiana –, conquistando os brasileiros de todas as etnias.

Adaptada de uma receita tradicional, porque os calabreses não encontraram em São Paulo os ingredientes originais ou eram caros demais, segue no Brasil uma fórmula que varia ligeiramente na composição, segundo os gostos pessoais. De modo geral, leva pimentão vermelho ligeiramente refogado ou totalmente cru, tomate maduro sem casca e sementes, ou seu extrato concentrado que pode ser substituído por passata (polpa cozida), alice (filezinho da anchova curtido em sal e azeite), às vezes alguns gramas de sardinha em óleo ou tomate, pimenta calabresa ou dedo-de-moça, ocasionalmente sasinha orégano e cebola, folhas de louro secas, alho, erva-doce seca, azeite e sal. Bate-se tudo no liquidificador e leva-se ao fogo para cozinhar e encorpar.

A região da Calábria, localizada no sul da Itália, no bico da bota formada pelo mapa do país, desenvolveu uma cozinha de base camponesa. Apesar da origem pobre e da predileção pelo sabor picante, é extremamente apetitosa. Suas melhores receitas estão ligadas às festas religiosas. No Natal e na Epifania vão à mesa treze pratos; no Carnaval os calabreses comem berinjela curtida no vinagre e prensada, macarrões, polpette (almôndegas) de carne ou berinjela, e carne de porco; comemoram a Páscoa com os cudduraci, pães doces à base de um tipo de massa folhada, moldados de diferentes formas, revestidos de confeitos, com um ovo cozidos no centro; e o habitual l’arrosto d’agnello (cordeiro assado).

Também preparam receitas para eventos familiares como casamento, batismo e crisma. Em certas ocasiões, os  calabreses se deliciam com ‘nduja, um salame típico, cor de vinho, que não endurece após o envelhecimento, obviamente picante pela incorporação abundante de peperoncino moído, variedade de pimenta vermelha apreciadíssima na Calábria; e, naturalmente, nunca falta a sardella, cujo berço natal seria a comuna de Crucoli, na província de Crotone, autodenominada “il paese della sardella”. Apreciam-na igualmente nas pitte (fogaças de massa de pão). Crucoli tem ascendência romana e conta hoje com pouco mais de três mil habitantes. Todos os anos, no segundo domingo de agosto, realiza no centro histórico a Sagra della Sardella, festa popular instituída na década de 1970.

Com um sabor forte e perfume inconfudível, a sardella se espalhou por toda a região, alcançando a província de Catanzaro, de onde vieram muitos dos calabereses que imigraram para São Paulo. Hoje, o antepasto é conhecido em todos os lugares do mundo para onde eles imigraram, inclusive Estados Unidos e Canadá. Os italianos o chamam de caviar de Crucoli, caviar calabrês, caviar meridional ou caviar do sul; e, pela excelência e baixo custo, de caviar dos pobres. Em algumas zonas da Calábria, ainda o  denominam rosamarina. A palavra sardella é um dos nomes da sardinha em italiano; outro é sardina.

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Na verdade, a receita brasileira é uma simplificação da italiana. Os imigrantes que desembarcaram em São Paulo, como dissemos, não tiveram condições de prepará-la do mesmo jeito que na terra natal. Em Crucoli, o antepasto leva fresquíssimas neonate di sardine, que vem a ser os filhotes do peixe capturados no Mar Mediterrâneo entre os meses de fevereiro e abril. “Devem ter o tamanho de uma folha de oliveira”, aconselham os calabreses. Lavados em água doce e secados, ficam em cestas com um pouco de sal. A seguir, vão para recipientes de terracota, nos quais se alternam camadas de sal e do peixe, junto a sementes de erva-doce selvagem.

A água liberada se transforma na salmoura que os conserva. Os filhotes de sardinha maturam por 6 a 7 meses. Então, prepara-se manualmente o antepasto, acrescentando-se novamente sementes de erva-doce selvagem e doses maciças de peperoncino. A sardella adquire, enfim, o tom vermelho-escuro e uma consistência cremosa e homogênea, de mousse. Dura meses a fio sem estragar. O antepasto também pode ser feito com sardinhas adultas, mas nesse caso é menos prestigiado.

Os calabreses dizem que sua sardella deriva do garum ou liquamen, o molho de peixe largamente utilizado na Antiguidade. Na Roma Antiga, condimentava uma infinidade de pratos, apesar do cheiro forte e da fama desabonadora que chegou até nós. O naturalista romano Plínio, o Velho, aquele que morreu em Pompeia ao tentar observar a erupção do vulcão Vesúvio, no ano 79, e ao mesmo tempo procurar salvar as vítimas da catástrofe, qualificou-o de “líquido de peixe podre”. Nesse ponto, entretanto, o garum nada tem a ver com a sardella. No antepasto calabrês se sobressaem notas aromáticas da erva-doce selvagem; já o sabor é dominado pelo picante do peperoncino.

Ficou complicado preparar legalmente a sardella autêntica na Itália, como acontecia no passado. Uma normativa da União Europeia (EU) vetou a pesca dos filhotes de sardinha com redes malha fina, para preservação da espécie. Pediu ainda um plano de gestão da captura dos minipeixes aos italianos, que já o apresentaram mas até agora não foi aprovado. No Brasil, a restrição não faz sentido. Quando se coloca no antepasto um pouco desse peixe, sai da lata. Como os imigrantes calabreses carregaram no pimentão vermelho, pouparam-nos da ilegalidade.

SARDELLA PAULISTANA

Rende cerca de 500 gramas

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INGREDIENTES

.8 pimentões vermelhos médios

.1 kg de tomates maduros

.250g de alice

.3 dentes de alho grandes ligeiramente amassados

.100 ml de azeite de oliva

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.Erva-doce seca a gosto

.3 folhas de louro

.Pimenta calabresa ou dedo-de-moça picada a gosto

.Sal a gosto

.Fatias de pão para acompanhar

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PREPARO

1.Divida os pimentões ao meio, descarte a membrana branca com as sementes e corte-os em pedaços.

2.Descasque os tomates, retire as sementes e corte-os também em pedaços.

3.Passe a alice ligeiramente em água corrente, para perder o excesso de sal. Escorra.

4.Em uma panela, faça suar os dentes de alho no azeite previamente aquecido. Deixe levantar os aromas e introduza os pimentões.

5.Mexa bem e mantenha alguns minutos no fogo, apenas para a mistura pegar gosto.

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6.Passe para o liquidificador, junte os tomates, a alice, a erva-doce, a pimenta, o sal e bata bem.

7.Leve esse composto ao fogo brando, introduza o louro e deixe reduzir até obter uma consistência cremosa.

8.Sirva a sardella fria, de preferência sobre fatias de pão, tostadas ou não.

Dica: Guarde a sardella em recipiente com tampa e cubra-a com azeite extravirgem de oliva; também pode ser congelada, para maior duração.

Receita de família de Olga Detota Corrente, de São Paulo.

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