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O horror na era do viral

A internet — e seus ruidosos frutos, as redes sociais — transformou-se em cenário dos atos mais cruéis e hediondos. Como lidar com o problema?

Por Filipe Vilicic, André Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 22 mar 2019, 07h00 - Publicado em 22 mar 2019, 07h00

Há uma desconcertante coincidência entre o massacre de Suzano — ocorrido naquele município da Grande São Paulo, no dia 13, quando dois ex-alunos da Escola Estadual Raul Brasil invadiram a instituição e lá mataram sete pessoas — e o ataque, perpetrado por um lobo solitário, a duas mesquitas na cidade de Christchurch, na Nova Zelândia, que deixou cinquenta mortos. Tanto os brasileiros Guilherme Taucci Monteiro, de 17 anos, e Luiz Henrique de Castro, de 25, como o australiano Brenton Tarrant, de 28, planejaram as ações com o intuito de viralizá-las na internet. Os crimes foram previamente organizados e divulgados por meio de fóruns virtuais — em especial, na parte menos acessível e mais obscura da rede, a deep web —, sobretudo nos chamados “chans”. Nesses espaços, frequentados por usuários devidamente resguardados pelo anonimato e representados em sua maioria por homens brancos racistas, misóginos, xenófobos e adeptos de ideologias terroristas, Monteiro, Castro e Tarrant encontraram respaldo para suas intenções macabras. O trio buscava nos chans a certificação de que seriam depois celebrados, nesse submundo on-line, pelos atos de horror que cometeram, com seus apoiadores ajudando a espalhar seus nomes, vídeos e mensagens pelas redes sociais. Tarrant exibiu ainda o que a crônica policial costuma chamar de — com o perdão do clichê — “requintes de crueldade’’: transmitiu ao vivo, pela internet, durante dezessete minutos, os seus atentados — que, sim, se tornaram virais.

“Muito obrigado pelos conselhos e orientações, DPR. Esperamos do fundo dos nossos coração (sic) não cometer esse ato em vão. Todos nós e principalmente o recinto será citado e lembrado (sic). Nascemos falhos mas partiremos como heróis.” A mensagem, reproduzida aqui em termos literais, foi publicada em um desses fóruns, o Dogolachan, em 7 de março, supostamente por um dos responsáveis pelo massacre de Suzano, que aconteceria seis dias depois. DPR é a alcunha do administrador do Dogolachan, cuja identidade real não se conhece — só se sabe que ele provavelmente mora na Espanha.

NOS HOLOFOTES – Em 2001, a Al Qaeda planejou os ataques de tal forma que as TVs filmassem ao vivo o segundo avião colidindo com o World Trade Center (Shannon Stapleton/Getty Images)

Tarrant seguiu prática similar. Pouco antes de investir contra as mesquitas, ele publicou, no site 8chan, um manifesto de 74 páginas no qual desenvolve argumentos contra os muçulmanos e defende a supremacia branca. Segundo o terrorista, entre os objetivos do ataque estavam “criar uma atmosfera de medo” e “incitar a violência” contra imigrantes. Para tanto, Tarrant afirmava que se valeria da “cobertura midiática” do atentado para propagar suas ideias. No documento, lançou mão ainda da mais debochada ironia, declarando que parte de seu ímpeto violento se devia ao videogame Spyro — trata-se, na verdade, de um jogo infantil, nada agressivo, no qual se controla um dragão-bebê roxo, citado justamente para ridicularizar aqueles que, ele tinha certeza, diriam depois que seu comportamento havia sido alimentado pelos games.

“Para ser honesto, não me surpreendo com a forma como a internet tem sido usada para propagar esses e outros crimes, pois as pessoas estão confiando cada vez mais nas redes sociais para validar aquilo que fazem”, disse a VEJA o americano Jun Sung Hong, especialista em estudos sobre violência contra grupos minoritários da Universidade Estadual de Wayne (EUA). “No caso dos delinquentes e terroristas, eles se apoiam nas novas tecnologias como oportunidades para ‘se gabar’ das maldades que cometem. Membros de gangues dos Estados Unidos, por exemplo, têm usado o Facebook e o Twitter para se exibir e promover agendas deturpadas. Mas isso só ocorre porque tem se dado crédito em demasia às redes”, completa Hong, cujo principal trabalho acadêmico acerca do tema, “Mídias sociais como vetores para a violência juvenil”, debruça-se sobre como a exposição on-line de crimes influencia os jovens.

(Arte/VEJA)

“Pronuncie os nomes daqueles que perdemos, em vez do nome daquele homem que os matou. Ele procurava notoriedade, mas nós, na Nova Zelândia, não lhe daremos nada, nem mesmo seu nome”, declarou a premiê neozelandesa Jacinda Ardern na terça-feira 19. A postura é compreensível, sobretudo tendo em vista que a fama era mesmo o que o terrorista, agora preso, buscava. No entanto, a viabilidade da medida sugerida é posta em xeque quando se considera que, para além da transmissão ao vivo do crime, o nome de Tarrant já circulava no WhatsApp, no Twitter, no YouTube e, com especial alcance, nos fóruns da deep web.

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Dois dias antes, no ataque em Suzano, o rito virtual fora similar. Não só em espaços obscuros da deep web, mas também em sites e redes sociais da internet regular multiplicavam-se fotos e vídeos do ataque. “Cada câmera seria importante porque os assassinatos aconteceriam na frente delas”, preconizou, via mensagem de celular, o adolescente que foi apreendido na semana passada, suspeito de ser “mentor intelectual” do atentado. Ele era o melhor amigo de Taucci Monteiro, que cometeu suicídio dentro da escola, logo após ter matado o comparsa, e acrescentou ainda a um interlocutor: “Quem seria o Isis (sigla em inglês para o grupo terrorista Estado Islâmico) perto de uns adolescentes com facas e umas armas?”.

Um estudo de 2016 da Associação Americana de Psicologia (APA, na sigla em inglês) traçou o perfil de atiradores em massa. De acordo com a pesquisa, que levou em conta 225 casos, a maioria dos criminosos em questão é formada por homens brancos, heterossexuais, com idade entre 20 e 50 anos. Apesar de compor uma camada mais privilegiada, pelo gênero sexual e pela cor da pele, é gente que se considera vítima de alguma injustiça. Notem-se as semelhanças com os frequentadores de fóruns como o Dogolachan. O levantamento ainda concluiu, por meio de um trabalho liderado pelo sociólogo americano Adam Lankford, professor de criminologia da Universidade do Alabama (EUA), que um dos principais motivos para os delinquentes executarem seus ataques era a procura pela fama. Lankford chega a estipular que 11% dos atiradores analisados tinham desvios psicológicos que inflavam essa necessidade de se fazer notar.

De acordo com estudo divulgado em 2012 pelo sociólogo americano Daniel Flannery, da Universidade Case Western Reserve (EUA), o desejo narcisístico também se soma a outras características que formam um autêntico caldeirão explosivo: a depressão, a baixa autoestima e o fascínio pela violência. De volta ao trabalho da APA: segundo a associação, desde 1990 cresceu em 70% o tempo de exibição dos rostos desse tipo de criminoso. Só para lembrar: a internet, tal como a conhecemos hoje, começou em 1989, com a criação do www, que a tornou um ambiente mais fácil de ser navegado. Assim, logo ela se transformaria no principal holofote de facínoras como os que atuaram em Suzano e na Nova Zelândia — sobretudo após o surgimento das redes sociais. Diante disso, uma questão parece incontornável: o que Facebook, Twitter, YouTube, Google e companhia poderiam fazer para coibir, ou mesmo eliminar de vez, o compartilhamento de imagens e vídeos que exibem ou estimulam crimes de qualquer natureza?

O problema não é de agora. Desde que o Facebook, palco de discussões de mais de 2 bilhões de pessoas em todo o planeta, lançou o seu recurso de live (o vídeo ao vivo), proliferaram as gravações de homicídios, abusos sexuais e atos terroristas. “A empresa deve ser responsabilizada, pois se tornou hoje uma plataforma que cumpre papel parelho ao de um serviço público”, acredita o advogado Renato Opice Blum, especialista em direito digital. “A reação à fatalidade na Nova Zelândia já comprova que o Facebook tem formas de conter o problema. Mas é impossível exigir que se consiga saber instantaneamente qual tipo de conteúdo está sendo transmitido.” No caso da matança na Nova Zelândia, o Facebook começou a apagar os vídeos do massacre minutos depois que subiram, mas novas versões eram postadas. Foi possível deletar 1,2 milhão desses vídeos, por meio de um algoritmo que rastreia imagens de brutalidade e também na mão, um a um, com a ajuda de funcionários. No entanto, o volume era tão grande que, ainda assim, nas primeiras 24 horas a filmagem do atirador australiano foi compartilhada 1,5 milhão de vezes.

Um executivo do YouTube assumiu que a gravação chegou a ser replicada uma vez por segundo em seus momentos iniciais. A primeira medida de contenção do serviço foi tentar barrar, temporariamente, a busca por qualquer nova postagem publicada — o que incluiria as assombrosas imagens do ato terrorista. Depois, tratou-se de simplesmente reprogramar o algoritmo para eliminar de vez o filme e impedir maior repercussão.

“Não há solução fácil à vista. O melhor que se pode fazer hoje é apoiar-se em uma variedade de sinais para analisar se uma transmissão pode ou não ser problemática, para em seguida direcioná-la a um exército de revisores humanos”, avalia o engenheiro da computação americano Aviv Ovadya, chefe do Centro de Responsabilidade para Mídias Sociais da Universidade de Michigan (EUA). “Esses sinais podem, por exemplo, mostrar que há 80% de probabilidade de violência e que se registrou um aumento de público de centenas de milhares de espectadores — elementos que indicariam a exibição de crimes”, explicou ele.

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Justiça seja feita, as redes sociais já tomam providências como as descritas por Ovadya. Entretanto, elas não se mostram suficientes para impedir a viralização de crimes. No caso da live da Nova Zelândia, por exemplo, mesmo que 1,2 milhão de posts tenham sido derrubados, sobraram outros 300 000 circulando durante um período não divulgado pelo Facebook. Podem também ser abertas investigações pontuais acerca da deep web — o Ministério Público de São Paulo está atrás dos organizadores do Dogolachan —, mas tornou-se tecnicamente impossível controlar esse mundo obscuro, no qual nada menos que 25% das buscas realizadas se referem a pornografia infantil e 32% dos itens vendidos estão ligados ao tráfico de drogas.

“O problema está no cerne das mídias sociais, criadas como plataformas para que quaisquer pessoas ajam de forma extensa, fácil, sem regulação, para que o conteúdo seja inadulterável”, observou, em entrevista a VEJA, o antropólogo americano Desmond Patton, da Universidade Colúmbia (EUA), especialista em estudos de violência on-line. “Os radicais se apoiam nessa premissa para se autopromover. Assim, recursos como os das hashtags permitem que indivíduos se organizem para estimular discussões saudáveis. Só que, ao mesmo tempo, possibilitam que terroristas também encontrem seus parceiros”, concluiu Patton.

A busca de notoriedade por parte dos criminosos mais inescrupulosos, claro, não é nova. No atentado às torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, no tristemente célebre 11 de setembro de 2001, a organização terrorista Al Qaeda fez cálculos para que a segunda colisão ocorresse dezessete minutos depois da primeira a fim de chamar a atenção das emissoras de TV, que filmariam — os terroristas tinham certeza — e mostraram tudo ao vivo. A internet e as redes sociais aumentaram assustadoramente a dimensão midiática que pode ser alcançada por qualquer delinquente, como também transformaram o modo como se planejam os crimes mais horrendos — e até como se julgam os culpados. É a “banalidade do mal”, para usar a famosa expressão da pensadora alemã Hannah Arendt (1906-1975), levada a um perigoso extremo de nosso tempo — o viral.

Com reportagem de Thais Navarro e Eduardo Gonçalves

Publicado em VEJA de 27 de março de 2019, edição nº 2627

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