Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

O retrocesso da liberação da ozonioterapia, método sem eficácia comprovada

Prática foi sancionada pelo presidente Lula como tratamento alternativo à disposição dos brasileiros — decisão movida por política, não pela ciência

Por Paula Felix Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 11 ago 2023, 19h12 - Publicado em 11 ago 2023, 06h00

Um dos pilares inegociáveis da medicina no século XXI — crucial para combater o negacionismo em torno da pandemia — é a comprovação de que suas práticas são seguras e eficazes. O governo do presidente Lula, de evidente respeito à ciência (no avesso do que promovia Jair Bolsonaro), contudo, caiu numa armadilha: na contramão dos posicionamentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e da própria ministra da Saúde, Nísia Trindade, autorizou a liberação de um tratamento sem nenhuma certeza, a ozonoterapia. Deu-­se a canetada populista para evitar briga com deputados que podem causar problemas em votações futuras. O método carece de estudos clínicos robustos e controlados e, exaltado como panaceia em alguns círculos, pode atrasar o diagnóstico e tratamento adequado de doenças sérias.

A ozonoterapia consiste na aplicação de uma mistura dos gases ozônio e oxigênio e tem sido alardeada desde a sua descoberta no século XIX, sobretudo por suas propriedades antimicrobianas — ela foi utilizada em soldados feridos na I Guerra, por exemplo. O potencial de inativar vírus, bactérias e outros germes despertou o interesse científico, e a técnica passou a ser investigada dentro e fora dos laboratórios em uma porção de males. Nos anos 1980, diante do avanço do HIV, o vírus da aids, pesquisadores chegaram a testar a solução em pacientes, mas os resultados desapontaram.

NA MIRA - Regulação: Anvisa continua arbitrando sobre indicações e equipamentos
NA MIRA - Regulação: Anvisa continua arbitrando sobre indicações e equipamentos (iStockphoto/Getty Images)

Mesmo assim, até hoje há propagandas na internet de que o ozônio cura moléstias severas, inclusive o câncer. É bobagem. Fracassaram as tentativas de provar a eficácia do gás diante de condições crônicas e mais graves. Mas muita gente prefere ignorar as peças científicas e, amparada em dados de experimentos com cobaias ou estudos pequenos, continua a apregoar supostos poderes anti-infecciosos, anti-inflamatórios e analgésicos.

Continua após a publicidade

Ao ganhar a roupagem de cura-tudo, a ozonoterapia se consolidou como tratamento alternativo a medicamentos e procedimentos tradicionais. E se colocou como extremamente versátil, pois pode ser aplicada sob a pele, na veia, nos músculos ou mesmo via retal, sendo, segundo seus defensores, capaz de estancar de gripe a reumatismo, passando por tumores e problemas circulatórios. Não surpreende, portanto, que, durante a pandemia, tenha sido abraçada como saída contra o vírus pela mesma ala que questionava a vacina e outras medidas com chancela científica. O apelo em torno dela se mostrou tão forte que levou o Conselho Federal de Medicina (CFM) a emitir, ainda em 2020, uma nota contrária não só à utilização em casos de Covid-19. A entidade ressaltou que a “ozonoterapia não é válida para nenhuma doença” e é um “procedimento em caráter experimental”.

O CFM mantém um grupo de trabalho que avalia as alegações do método e segue com o mesmo posicionamento contrário depois da sanção da lei por Lula. A visão é compartilhada pela Anvisa, que reforça a carência de evidências a favor do tratamento e salienta que, no país, ele só pode ser usado em procedimentos odontológicos, como em cáries, e estéticos, como limpezas de pele. Fora isso, nada está regulamentado pela agência.

arte ozonioterapia

Continua após a publicidade

No Senado, antes de o projeto de lei passar adiante, médicos que também atuam como senadores demonstravam preocupação com a aprovação. Sem o suporte da categoria e de sua principal entidade, o CFM, o texto foi alterado para permitir a aplicação por outros profissionais, desde que ligados a conselhos de fiscalização das classes. Quando a iniciativa avançou até a mesa de Lula, a Academia Nacional de Medicina (ANM) lançou carta aberta pedindo o veto. “Não temos nenhum trabalho em revistas científicas importantes que demonstre que a ozonoterapia tem benefícios terapêuticos”, diz Francisco Sampaio, presidente da ANM.

Por mais que a lei pareça inofensiva por não expandir imediatamente a prática e pelo fato de a abordagem já compor o rol de terapias complementares em vigor no Ministério da Saúde desde 2018, passa uma mensagem negativa sobre a defesa da ciência e a oferta de tratamentos realmente seguros e eficazes para a população. “É uma decisão bastante arriscada, porque o ozônio não é algo inerte”, diz Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC). “É um gás corrosivo que pode até ferir.” A posição é endossada pela agência regulatória dos Estados Unidos, a FDA. Os americanos afirmam desconhecer aplicação médica de sucesso e indicam a toxicidade da invenção.

O governo, ao conceder sinal verde à ozonoterapia, apesar de algum cuidado, presta um desserviço e alimenta ilusões. Com tudo, mas especialmente no campo da saúde, não pode ser assim. Enquanto o método não for comprovado, tal como foi comprovada a eficácia das vacinas contra a Covid-19, uma única indicação é possível: prudência. O resto é misturar remédio com política, cujo resultado conhecemos.

Continua após a publicidade

Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2023, edição nº 2854

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.