O retrocesso da liberação da ozonioterapia, método sem eficácia comprovada
Prática foi sancionada pelo presidente Lula como tratamento alternativo à disposição dos brasileiros — decisão movida por política, não pela ciência
Um dos pilares inegociáveis da medicina no século XXI — crucial para combater o negacionismo em torno da pandemia — é a comprovação de que suas práticas são seguras e eficazes. O governo do presidente Lula, de evidente respeito à ciência (no avesso do que promovia Jair Bolsonaro), contudo, caiu numa armadilha: na contramão dos posicionamentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e da própria ministra da Saúde, Nísia Trindade, autorizou a liberação de um tratamento sem nenhuma certeza, a ozonoterapia. Deu-se a canetada populista para evitar briga com deputados que podem causar problemas em votações futuras. O método carece de estudos clínicos robustos e controlados e, exaltado como panaceia em alguns círculos, pode atrasar o diagnóstico e tratamento adequado de doenças sérias.
A ozonoterapia consiste na aplicação de uma mistura dos gases ozônio e oxigênio e tem sido alardeada desde a sua descoberta no século XIX, sobretudo por suas propriedades antimicrobianas — ela foi utilizada em soldados feridos na I Guerra, por exemplo. O potencial de inativar vírus, bactérias e outros germes despertou o interesse científico, e a técnica passou a ser investigada dentro e fora dos laboratórios em uma porção de males. Nos anos 1980, diante do avanço do HIV, o vírus da aids, pesquisadores chegaram a testar a solução em pacientes, mas os resultados desapontaram.
Mesmo assim, até hoje há propagandas na internet de que o ozônio cura moléstias severas, inclusive o câncer. É bobagem. Fracassaram as tentativas de provar a eficácia do gás diante de condições crônicas e mais graves. Mas muita gente prefere ignorar as peças científicas e, amparada em dados de experimentos com cobaias ou estudos pequenos, continua a apregoar supostos poderes anti-infecciosos, anti-inflamatórios e analgésicos.
Ao ganhar a roupagem de cura-tudo, a ozonoterapia se consolidou como tratamento alternativo a medicamentos e procedimentos tradicionais. E se colocou como extremamente versátil, pois pode ser aplicada sob a pele, na veia, nos músculos ou mesmo via retal, sendo, segundo seus defensores, capaz de estancar de gripe a reumatismo, passando por tumores e problemas circulatórios. Não surpreende, portanto, que, durante a pandemia, tenha sido abraçada como saída contra o vírus pela mesma ala que questionava a vacina e outras medidas com chancela científica. O apelo em torno dela se mostrou tão forte que levou o Conselho Federal de Medicina (CFM) a emitir, ainda em 2020, uma nota contrária não só à utilização em casos de Covid-19. A entidade ressaltou que a “ozonoterapia não é válida para nenhuma doença” e é um “procedimento em caráter experimental”.
O CFM mantém um grupo de trabalho que avalia as alegações do método e segue com o mesmo posicionamento contrário depois da sanção da lei por Lula. A visão é compartilhada pela Anvisa, que reforça a carência de evidências a favor do tratamento e salienta que, no país, ele só pode ser usado em procedimentos odontológicos, como em cáries, e estéticos, como limpezas de pele. Fora isso, nada está regulamentado pela agência.
No Senado, antes de o projeto de lei passar adiante, médicos que também atuam como senadores demonstravam preocupação com a aprovação. Sem o suporte da categoria e de sua principal entidade, o CFM, o texto foi alterado para permitir a aplicação por outros profissionais, desde que ligados a conselhos de fiscalização das classes. Quando a iniciativa avançou até a mesa de Lula, a Academia Nacional de Medicina (ANM) lançou carta aberta pedindo o veto. “Não temos nenhum trabalho em revistas científicas importantes que demonstre que a ozonoterapia tem benefícios terapêuticos”, diz Francisco Sampaio, presidente da ANM.
Por mais que a lei pareça inofensiva por não expandir imediatamente a prática e pelo fato de a abordagem já compor o rol de terapias complementares em vigor no Ministério da Saúde desde 2018, passa uma mensagem negativa sobre a defesa da ciência e a oferta de tratamentos realmente seguros e eficazes para a população. “É uma decisão bastante arriscada, porque o ozônio não é algo inerte”, diz Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC). “É um gás corrosivo que pode até ferir.” A posição é endossada pela agência regulatória dos Estados Unidos, a FDA. Os americanos afirmam desconhecer aplicação médica de sucesso e indicam a toxicidade da invenção.
O governo, ao conceder sinal verde à ozonoterapia, apesar de algum cuidado, presta um desserviço e alimenta ilusões. Com tudo, mas especialmente no campo da saúde, não pode ser assim. Enquanto o método não for comprovado, tal como foi comprovada a eficácia das vacinas contra a Covid-19, uma única indicação é possível: prudência. O resto é misturar remédio com política, cujo resultado conhecemos.
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2023, edição nº 2854