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A geração tique-toque: na era das redes, surgem novos tipos de cacoetes

A alta nos casos, especialmente entre meninas adolescentes, intriga pesquisadores e pode estar ligado ao uso excessivo dos aplicativos

Por Luiz Felipe Castro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 13h27 - Publicado em 30 out 2021, 08h00

Na França do início do século XIX, a marquesa de Dampierre costumava chocar a aristocracia local ao proferir palavrões e ofensas sem sentido, aos quais somava até sons de latidos. A jovem jurava não ter controle sobre seus atos, o que intrigava os médicos daquela época. Décadas depois, com base no caso de Dampierre e em outros, semelhantes, o neurologista francês Georges Gilles de la Tourette (1857-1904) descreveria uma síndrome que levaria seu nome. Trata-se de um transtorno neurológico hereditário, que costuma se manifestar na infância, caracterizado por movimentos repetitivos involuntários ou ruídos indesejados — ou, como se diz no jargão popular, tiques nervosos. Duzentos anos depois dos surtos da marquesa, pesquisadores de diversos países têm alertado para o surgimento de um novo e insólito tipo de cacoete. Sua origem é preocupante: as redes sociais, em especial o onipresente TikTok, com mais de 1 bilhão de usuários.

Uma série de artigos publicados em revistas médicas desde o começo da pandemia de Covid-19 tratou do aumento de casos de jovens que apresentaram início repentino de tiques motores e fônicos. Nas principais clínicas especializadas de Londres foram registrados seis por ano, em 2019, ante quatro por semana, no auge da pandemia, em 2020 e 2021. São sintomas diferentes dos da síndrome de Tourette (veja no quadro abaixo) e de prevalência feminina — os casos “clássicos” costumam acometer quatro homens para cada mulher. E o que tem o onipresente TikTok a ver com essa história? Verificou-se o uso e abuso de visualizações, entre as jovens acompanhadas em consultórios, de vídeos com a hashtag #tourettes. Um dos recortes do estudo cruzou dados dos consultórios e de mais de 3 000 vídeos e revelou que diversas meninas passaram a replicar involuntariamente a palavra beans (feijão) com sotaque britânico, repetindo o tique de uma popular influenciadora. Ou seja, as meninas estavam “copiando” o transtorno alheio. Esse mimetismo já foi descrito como “doença psicogênica em massa”, mas costumava ocorrer em locais geográficos específicos. As redes sociais, porém, lhe dão incômodo alcance global.

arte Tik Tok
(./.)

Dependendo do grau de intensidade, os tiques podem ser tratados tanto com medicamentos quanto de maneira mais simples, com terapia cognitivo-comportamental. No entanto, já se sabe que os “tique-­toques” geralmente estão associados a problemas mais graves de autoestima, depressão e ansiedade. Eis o perigo da novíssima constatação. Assistir a vídeos de tiques pode representar um gatilho para grupos já vulneráveis. “Os adolescentes sentem uma necessidade muito primitiva de ser vistos e de ter uma identidade, mesmo que seja a de um doente”, diz Mauro Victor de Medeiros Filho, psiquiatra da infância e adolescência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “Ao ver vídeos de tiques, o corpo ‘aprende’ a imitá-los e isso pode acabar exacerbando o problema.” Complicações semelhantes ocorrem, segundo Medeiros, em conteúdos de autolesão não suicida, ou seja, de pessoas que se cortam sem intenção de se matar. Estudos comprovam que, quanto mais grave a mutilação exibida, mais os filmetes terão visualizações e comentários, viralizando. “As redes sociais reforçam esse comportamento, o que é muito preocupante”, diz Medeiros.

Ressalte-se que a profusão de tiques, agora revelada, acompanha uma tendência: na quarentena, entre quatro paredes, houve maciço aumento de casos de transtornos neuropsiquiátricos entre todas as idades. “Na pandemia, fomos privados de atividades mais sensoriais e de convivência, ficamos ilhados no ambiente doméstico”, diz o neurologista e neuropediatra Mauro Muszkat, coordenador do Núcleo de Atendimento Neuropsicológico Interdisciplinar da Unifesp. O uso abusivo de telas ao alcance das mãos representou, inegavelmente, um agravante. “Até mesmo bebês foram afetados por essa exposição exagerada”, afirma Muszkat. “Estimular o cérebro digitalmente é estimular o imediatismo, reações mais automáticas e menos reflexivas.”

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Em nota, os responsáveis pelo TikTok se defenderam: “A segurança e o bem-estar de nossa comunidade são nossa prioridade, e estamos consultando especialistas do setor para entender melhor essa experiência específica”. Apesar da piada fonética pronta (tique-toque), os especialistas garantem que todas as redes podem apresentar efeitos nocivos. O que fazer, então? Moderação e atenção. Desde o ano passado, o TikTok, cuja idade mínima obrigatória para uso (nem sempre respeitada) é de 13 anos, tem uma ferramenta de controle parental, por meio da qual, ao ativar o emparelhamento familiar, os pais podem ter acesso aos vídeos vistos pelos filhos e gerenciar o tempo de tela. É recurso ainda pouco usado, mas é ótimo que exista. O zelo talvez seja a melhor arma contra o exagero, porque os tiques podem ser apenas a parte mais visível de um problema maior de saúde.

Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2021, edição nº 2762

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