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Pelo feijão com arroz

Segundo o médico que em 1999 alertava sobre o avanço da obesidade no país, a solução é a volta à comida caseira — e a adoção de tratamentos personalizados

Por Natalia Cuminale Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 20 jul 2018, 06h00 - Publicado em 20 jul 2018, 06h00
SINAL AMARELO - O endocrinologista em VEJA dezenove anos atrás: prevendo o pior (//Reprodução)

A edição de VEJA que chegou às bancas com data de 14 de julho de 1999 trazia nas Páginas Amarelas uma entrevista desconcertante. Nela, o endocrinologista carioca Walmir Coutinho dizia ser necessário deter o alastramento da obesidade no Brasil antes que fosse tarde. Mas o alerta, infelizmente, não conseguiu alterar o curso da doença. Na década de 90, 40% das mulheres e 27% dos homens estavam acima do peso. Nos dias atuais, esses números subiram para 50,5% no caso delas e 57,7% entre eles. Ou seja, a briga com a balança é uma realidade para a maioria dos brasileiros. Nem o próprio Coutinho escapa. “Com o stress da profissão, cheguei a estar 20 quilos acima do meu peso ideal (que seria 87 quilos, para o seu 1,87 metro). Fiquei obeso”, contou ele ao receber a revista de novo, dezenove anos depois. O médico relatou que se submeteu a um rigoroso tratamento, mudou o cardápio e a rotina e conseguiu perder os quilos a mais. No entanto, admite que já engordou 5 quilos. “O ambiente conspira contra o controle de peso”, observa. Aos 59 anos, Coutinho é diretor do Departamento de Medicina da PUC-Rio e diretor do comitê executivo da Federação Mundial de Obesidad​e. Na entrevista a seguir, concedida no restaurante de um hotel paulistano, o endocrinologista, considerado uma referência internacional em sua área, reflete sobre os motivos pelos quais a obesidade chegou ao preocupante patamar atual e explica o que é preciso fazer para freá-la.​

Em 1999, o senhor disse a VEJA que era preciso reverter a tendência à obesidade entre os brasileiros antes que fosse tarde demais. Isso claramente não ocorreu. Por quê? Na verdade, aconteceu exatamente o contrário. A obesidade se alastrou sobremaneira. Matou milhares de pessoas — mortes que poderiam ter sido evitadas. Muito pouco se fez, e hoje até mesmo as crianças já foram acometidas por essa doença. Nos programas infantis na televisão, a média de calorias dos produtos anunciados nas propagandas é o triplo da verificada nos comerciais do horário adulto. Os vídeos e sites visitados pelas crianças estão cheios de anúncios de refrigerantes e salgadinhos. Não adianta dizer ao pai que tem de tirar o filho da frente da tevê e colocá-lo para fazer atividade física se ele mora em um bairro muito violento. A obesidade infantil nos Estados Unidos é maior do que no Brasil, porém a taxa de crescimento do problema aqui é muito mais acelerada. Vamos ultrapassar os americanos. O único estrato da população brasileira que conseguiu uma redução na prevalência do excesso de peso foram as mulheres de alta renda das regiões Sul e Sudeste. A educação é um fator crítico. Um estudo que fizemos com a população bem carente de uma comunidade no Rio de Janeiro mostrou claramente que o fator de risco para o desenvolvimento da obesidade é a baixa escolaridade.

Qual seria, nesta altura, a solução? Em primeiro lugar, valorizar a alimentação do passado. Temos de voltar a comer feijão com arroz e carne, cujo consumo está em queda. É muito mais saudável. Não há comparação com o que estamos consumindo agora. A mudança, entretanto, não é simples. Vai muito além do gosto alimentar. Inclui o estilo de vida. É muito mais rápido, fácil e barato comer fast-food, sobretudo para quem passa muito tempo fora de casa. Falta também aos governos uma percepção real do tamanho do problema. Atualmente, a obesidade acarreta um dos maiores custos globais. Empatada com o tabagismo, atrás apenas de guerras, violência e terrorismo, a doença gera despesas de 2 trilhões de dólares ao ano — e esse valor tende a crescer, por causa das enfermidades que se associam ao sobrepeso.

“O único estrato da população brasileira que conseguiu uma redução na prevalência do excesso de peso foram as mulheres de alta renda nas regiões Sul e Sudeste”

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O que mudou no tratamento da obesidade nesses quase vinte anos? Antigamente, preconizava-se uma dieta de 1 800 calorias para homens e 1 500 calorias para as mulheres. Havia também um porcentual fixo de fontes de alimentos a ser distribuídos no cardápio: 50% de carboidratos, 35% de gorduras e 15% de proteínas. Esse cálculo ainda é fundamental, contudo agora está enriquecido com outras informações. Naquele tempo, não se fazia distinção entre o carboidrato de alto índice glicêmico, que é o pior, e o de baixo índice glicêmico. Tome-se o exemplo de duas frutas, melancia e maçã. O índice glicêmico (ou seja, a velocidade com que a glicose se eleva no sangue) da melancia é muito mais alto. Então, teoricamente, se você comer 200 calorias de melancia, tenderá a engordar mais do que se comer 200 calorias de maçã. As duas frutas contêm carboidratos, mas, em razão do índice glicêmico, causam um impacto diferente. Antes, igualmente, não se fazia distinção do tipo de gordura que deveria ser consumido. Hoje sabemos que há a gordura boa e a gordura ruim. A boa é a encontrada nas nozes e castanhas, e a ruim é a gordura animal, como a da picanha, do torresmo e da manteiga. No passado também se dava um valor extraordinário à atividade física. Atualmente, o consenso é fazer uma restrição de 500 a 1 000 calorias por dia, com base no que a pessoa já consome. A questão não é quanto comer de carboidrato ou gordura. É preciso restringir as calorias.

O paciente que recorre ao médico para emagrecer hoje é diferente daquele da década de 90? Quase nada. O paciente de agora, assim como fazia o do passado, chega com uma expectativa muito exagerada. E isso é universal. Pesquisas em vários países mostram que quando uma mulher obesa entra em um consultório com o objetivo de emagrecer tem o desejo de eliminar 38% do seu peso. Ou seja, se tem 100 quilos, quer chegar aos 62. Ela quer entrar no vestido que usou no casamento. Nem com a cirurgia bariátrica se consegue alcançar essa meta irreal. Para se ter uma ideia, a perda de peso após a operação é de 30%, em média. No caso dos remédios para emagrecer, a redução é menor, de 5% a 10%. O pior é que as pessoas tomam o medicamento por apenas nove semanas, um tempo curto demais. O que acontece é que elas esperam ter uma perda rápida de peso com o remédio nos primeiros dois meses e, se isso não ocorre, simplesmente o abandonam. O certo é tomá-lo, no mínimo, de seis meses a um ano. Alguns pacientes precisam tomar medicamentos para emagrecer pelo resto da vida, como ocorre com qualquer outro remédio para o controle da pressão ou do diabetes.

Ao longo das últimas duas décadas, a ciência conseguiu medir quanto de “culpa” tem o obeso? Há vinte anos, simulávamos uma espécie de tribunal nos congressos médicos com a seguinte pergunta: “O obeso é culpado ou inocente?”. A resposta era: “Culpado”. Hoje sabemos que é inocente. Ele é uma vítima dos genes e, em especial, do ambiente. Somente em 2017 a obesidade foi reconhecida como doença pela Federação Mundial de Obesidade. É um mal que pode levar a outras noventa afecções. Atualmente sabemos que 30% das causas são genéticas e 70% decorrem do ambiente. Quando assistimos a filmes do começo do século XX, não vemos pessoas obesas andando pelas ruas de São Paulo. A obesidade existia, é claro, porém era uma doença rara. Esse mesmo estudo, se fosse feito há um século, chegaria a outra conclusão, conferindo à genética 90% das causas e 10% ao ambiente. 

“O obeso é culpado ou inocente? No passado a resposta era: culpado. Hoje sabemos que é inocente. Ele é uma vítima dos genes e, sobretudo, do ambiente”

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Muitos dizem que o mal do alimento equivale ao do cigarro. O senhor concorda? Mais do que isso: no caso do alimento, o desafio é ainda maior. É difícil convencer alguém a parar de consumir comida, como tem sido possível fazer com o hábito de fumar. Tudo ao redor de uma pessoa predispõe à obesidade. É preciso direcionar o consumo dos alimentos. Por exemplo, uma das medidas estudadas no Brasil foi expor os alimentos saudáveis em locais privilegiados no supermercado. Além disso, criar incentivos de preço: subsidiar os mais saudáveis e taxar os menos.

Como será o tratamento da obesidade no futuro? Até vinte anos atrás, acreditava-se na bala de prata contra a obesidade, ou seja, no desenvolvimento de um remédio que resolveria o problema de todos os obesos do planeta. A própria indústria parou de perseguir esse objetivo. É muito difícil encontrar o alvo preciso; a obesidade é muito heterogênea. O que vai prevalecer, acredito, é a busca de uma solução individualizada para cada paciente. Ao combinar todos os elementos da questão, o tratamento da obesidade terá resultados muito melhores. Não há dúvida de que os tratamentos se tornarão cada vez mais eficazes. E isso, na verdade, já começa a ocorrer. O próximo remédio para emagrecer que deverá ser aprovado, cujo processo está em andamento, levará a uma perda de peso até 70% maior em relação aos melhores medicamentos disponíveis. A individualização no tratamento não se restringirá às medicações, mas incluirá também os exercícios físicos e a alimentação. A dieta será personalizada. Hoje posso encaminhar o paciente para fazer um teste genético que aponte um marcador associado a uma melhor resposta ao corte de carboidratos, por exemplo. Na linha da indústria, podemos esperar um hambúrguer 100% saudável ou um pão com índice glicêmico baixíssimo. Teremos recursos eficazes em várias frentes. No entanto, não há bala de prata contra a obesidade. Nunca haverá.

Publicado em VEJA de 25 de julho de 2018, edição nº 2592

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