Os limites do governo
Em uma democracia constitucional, arapongas não têm licença para espionar quem quer que seja motivados por antipatias políticas ou ideológicas
Desde meados da década de 80, com a volta do país à democracia, os governos andam às tontas quando se trata de definir um perfil para os órgãos de inteligência. O tema é delicado por herança da ditadura. O SNI, sigla que designava o serviço secreto do regime militar, degenerou em um órgão de intrigas, relatórios dolorosamente amadores e centro de conspirações e perseguições contra adversários ideológicos. Transformou-se em um “monstro”, como o classificou até seu criador, o general Golbery do Couto e Silva (1911-1987).
Com essa herança deletéria, os governos democráticos sempre tiveram dificuldade de lidar com órgãos de inteligência, que, por natureza, são tentaculares e atuam no limite da legalidade. Em todos os governos democráticos — de Fernando Collor a Dilma Rousseff —, os arapongas meteram-se em espionagens heterodoxas que, uma vez reveladas, resultavam num protocolo imutável: os envolvidos eram demitidos ou afastados do cargo e o governo jurava que jamais admitira perseguições políticas ou ideológicas.
Agora, algo parece estar mudando. Na semana passada, o jornal O Estado de S. Paulo revelou que agentes da Abin andaram bisbilhotando o “clero de esquerda”, que se prepara para participar do Sínodo para a Amazônia, em Roma, em outubro. Desta vez, o governo teve uma reação distinta. Em uma nota ambígua, desmentiu que a Abin espionasse os membros da Igreja Católica, mas disse que “existe preocupação” com “parte dos temas” do encontro, que “afetam, de certa forma, a soberania nacional”.
Em uma democracia constitucional, arapongas do governo não têm licença para espionar quem quer que seja motivados por antipatias políticas ou ideológicas. Do mesmo modo, a Receita Federal também não pode mirar em um contribuinte, seja ele quem for, por quaisquer razões que não sua vida fiscal. Na semana passada, três notas publicadas por VEJA, na coluna Radar, informaram que fiscais vinham investigando o ministro Gilmar Mendes e sua mulher para identificar “possíveis fraudes de corrupção, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio ou tráfico de influência”. Por quê? A Receita Federal não investiga nenhum desses crimes. Isso é assunto da polícia.
Em outra homenagem à ambiguidade, a Receita divulgou nota em que afirma que não havia investigação, apenas uma análise preliminar — e, em seguida, informou que apuraria o vazamento à imprensa e a atuação dos auditores. “A Receita não pode ser convertida numa Gestapo”, disse o ministro Gilmar Mendes. Acertou no diagnóstico. A Receita investiga mais de uma centena de “agentes públicos” em busca de crimes que não são da alçada de seus auditores. Um estado democrático de direito não comporta tais abusos.
Publicado em VEJA de 20 de fevereiro de 2019, edição nº 2622