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Guerra pelo futuro

A verdadeira disputa, em toda essa história, sempre foi para decidir se continuará a mandar no país o sistema que está mandando hoje.

Por J.R. Guzzo Atualizado em 4 jun 2024, 17h51 - Publicado em 7 abr 2018, 06h00

O Supremo Tribunal Federal, por um triz, acaba de tirar o Brasil de uma descida perigosa, talvez fatal, em direção à desordem imediata. Já não existe aqui há muito tempo um regime que preencha boa parte, talvez a maioria, dos requisitos necessários para merecer a classificação de “democracia”. Mas, se for feito um pouco mais de esforço para piorar as coisas, todos podem ter uma certeza: a democracia brasileira, mesmo essa droga de democracia que ainda há por aí, vai para o espaço. O ex-presidente Lula, com o apoio em peso de tudo o que existe de mais potente na corrupção brasileira, quis um “salve” do STF para invalidar todas as decisões da Justiça que o condenaram até agora — quis receber, oficialmente, um certificado de indulto. Quase levou. Naturalmente, vai continuar tentando, incentivado pela presença na Suprema Corte de ministros que militam abertamente em favor da impunidade. Aposta na confusão, no desmanche progressivo do governo que ele próprio legou ao país e nas “pesquisas eleitorais”. É, cada vez mais, um tudo ou nada.

Na verdade, o que esteve realmente em jogo no STF foi o desfecho de mais um confronto na guerra aberta que existe hoje para controlar o futuro do Brasil. É algo maior do que Lula, ou mais que uma pura e simples questão de justiça — a punição, como manda a lei, dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro pelos quais ele foi condenado a doze anos de cadeia nos dois níveis do Judiciário que o julgaram até o momento. A verdadeira disputa, em toda essa história, sempre foi para decidir se continuará a mandar no país, e a mandar na vida dos cidadãos, o sistema que está mandando hoje. Você sabe muito bem que sistema é esse — e sabe que Lula é, no momento, a figura mais importante para mantê-lo de pé. Trata-se da vasta federação de gangues partidárias, empreiteiras de obras públicas, altos burocratas do Estado, empresas que recebem favores do governo e mais toda a multidão de parasitas que, de uma forma ou de outra, vive à custa dos impostos que você paga dia e noite, e vai pagar até morrer. Essa gente está destruindo o estado de direito democrático no Brasil — quer dividir o país em duas categorias de cidadãos, os que são obrigados a cumprir a lei e os que estão autorizados a não respeitar lei alguma. É, no fim das contas, o grande combo de aproveitadores do Tesouro Nacional, de um lado, e a população brasileira, de outro. Eles operam em áreas diferentes, e têm caras diferentes, mas no conjunto são a mesma coisa e produzem os mesmos desastres.

É isso, exatamente, o Brasil de Lula — uma criatura deformada que foi sendo construída em torno e em cima de nós durante os últimos quinze anos. Ela transformou a democracia brasileira numa imitação degenerada do que deve ser um regime democrático decente — recolheu tudo o que havia de mais maligno na vida pública nacional até Lula chegar à Presidência da República, somou a isso os vícios novos trazidos ao governo pelo PT e produziu o país que aparece aí à sua frente. Esse Brasil de Lula, que hoje está em guerra para sobreviver, é muitas coisas ao mesmo tempo. É, em primeiro lugar, o país da impunidade — onde se quer assegurar ao rico e ao poderoso, que dispõem de dinheiro ilimitado para pagar advogados caríssimos, o direito de cometer crimes e não cumprir, simplesmente, as penas a que foram condenados.

O princípio jurídico pelo qual têm lutado com tanta ferocidade ministros do STF, bandidos de bolso cheio e es-critórios cinco-estrelas de advocacia penal é o seguinte: qualquer criminoso bem apoiado por defensores espertos, mesmo um assassino de crianças, só poderá receber punição se for condenado na “quarta instância”. Isso quer dizer, segundo eles, que é preciso condenar o sujeito quatro vezes seguidas, durante anos a fio, para que ele pague pelo crime que cometeu. Uma aberração como essa não existe, pura e simplesmente, em nenhum país civilizado do mundo — ali um condenado como Lula vai para a cadeia, e pronto. É claro que esse “princípio legal” é apenas uma trapaça para não punir nunca o delito — mesmo porque, depois de anos e anos à espera de uma decisão, ele “prescreve”, ou deixa de ser delito. Nossos altos magistrados ainda insultam a população que lhes paga o salário (mais benefícios) dizendo que a liberdade até a “quarta instância” é um “direito de todos os brasileiros”. É uma mentira grosseira. Quem tem dinheiro para sustentar anos de processo na Justiça? A “presunção de inocência” é coisa privativa de milionário. Dos 700 000 brasileiros hoje na cadeia, quase 300 000 são presos “provisórios” — nada de “instâncias”, nem embargos, nem agravos, nem outras tramoias judiciárias para eles. Os ministros pró-­Lula, obviamente, querem que todos se lixem. Seu único interesse, do primeiro ao último minuto, foi salvar a impunidade que abençoa a elite brasileira há 500 anos, e da qual Lula é hoje o senhor de engenho número 1.

O Brasil de Lula é um Brasil sem Lava-Jato — a operação judicial que pela primeira vez em toda a história do país prendeu, processou e condenou a penas de prisão dezenas de marginais de primeiríssima potência. São donos de empreiteiras, arquiduques das diretorias supremas da Petrobras e outras estatais, altos executivos de empresas, políticos ladrões, chefes de partidos e toda a subespécie de delinquentes que vêm da mesma sarjeta. A principal atividade da vida deles é roubar o Estado, ou seja, roubar os impostos que você paga; muitos confessaram seus crimes. Que prova melhor que isso alguém pode esperar? Desde 1500 toda essa manada viveu, prosperou e se multiplicou sem ser incomodada; é óbvio que quer continuar assim para sempre. Lula é o pau que segura esse circo. Mas é claro que não está sozinho: sua impunidade ajudaria a impunidade de uma multidão de fora da lei. Alguém notou que praticamente ninguém, num Congresso Nacional com 513 deputados e 81 senadores, abriu a boca para comentar o julgamento do STF? Alguém notou o silêncio geral dos governadores e prefeitos? Por que seria, não? Porque a grande maioria está no mesmo barco de Lula, torcendo para ele, apavorada com a Lava-Jato e disposta a tudo para continuar não apenas fora da cadeia, mas no desfrute da licença oficial que tem para roubar. E o presidente da República, então? Foi enfiado no cargo diretamente por Lula, que o impôs como vice na chapa de Dilma Rousseff; sua calamidade é a calamidade do PT, que até há pouco gritava “Fora, Temer”. Está sendo acusado de crimes rasteiros, nomeia para o seu ministério políticos que têm certificado público de ladrões do Erário — e, obviamente, gostaria muito que os ministros do STF criassem a doutrina jurídica da punição pós-morte, pela qual o indivíduo só poderia ser punido depois de morrer.

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Também esteve em julgamento no STF, lutando para sobreviver, o Brasil da farsa. Nesse país de mentira, Lula é apresentado como tudo aquilo que não é. Os “juristas”, por exemplo, sustentam que o ex-presidente é um cidadão que precisa ser protegido das possíveis arbitrariedades da Justiça, como 200 milhões de outros; mantê-lo fora da cadeia, segundo eles, não é nenhum favor pessoal, Deus nos livre e guarde, mas apenas uma decisão corajosa que garante o direito “de todos”. Os cúmplices, os serviçais e os simples devotos de Lula, por sua vez, afirmam que sua condenação não tem nada a ver com o fato de que, segundo decidiu legalmente a Justiça brasileira, ele é um ladrão, culpado dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Lula, de acordo com eles, só está com doze anos de cadeia nas costas porque “é o maior líder de esquerda em todo o mundo”. Sendo assim, “o capitalismo” jamais iria permitir que ele continuasse salvando os pobres do Brasil. E a roubalheira alucinante da Petrobras, mais todo o resto do seu governo? E os seus amigos e sócios no poder que confessaram os próprios crimes de corrupção? E os bilhões em dinheiro roubado que devolveram? Não é por aí, jura o Sistema Lula. O único problema do chefe é ser um homem de esquerda.

Esse Brasil da farsa foi criado por anos seguidos de propaganda em massa, toda ela paga com o seu dinheiro — da mesma forma como é o seu dinheiro, e nenhum outro, que está pagando esses honorários monstruosos aos advogados da turma toda, desde Lula até o ladrãozinho mais meia-boca, desses que levam um Land Rover ou uma cozinha equipada e se dão por satisfeitos. Não tem a ver apenas com o presidente — vai muito além. Trata-se do país do trem-bala que não existe, dos metrôs onde as estações para o aeroporto ou para o estádio, por exemplo, ficam a 1 quilômetro do aeroporto ou do estádio, ou das ferrovias que param no meio do nada — enquanto os trilhos já postos são roubados para ser vendidos a peso. É o país do Maracanã, reconstruído para os Jogos Pan-A­mericanos, depois para a Olimpíada e hoje abandonado — ou do Museu do Ipiranga, o maior de São Paulo, fechado desde 2013 com a promessa de ser reaberto em 2022. Nesse país nenhuma obra pública é feita levando em conta o interesse do público: ou sua função é beneficiar o construtor e os seus cúmplices nos governos, ou então a obra não é construída. O Brasil da mentira, que briga tanto para sobreviver, é o país do “avanço social”, do “resgate dos pobres” e de outras invenções dos governos Lula e Dilma. Até hoje não se sabe de nenhum rico que tenha ficado pobre em qualquer desses dois reinados. Ao contrário, temos 150 000 milionários (em dólares) por aqui, segundo as últimas contas; nenhum outro país da América Latina tem tantos. Quem ganhou mais dinheiro no país das “conquistas sociais”? Marcelo Odebrecht, o empreiteiro-modelo de Lula, ou o miserável do Bolsa Família? Joesley Batista ou o pobre coitado da fila do ônibus? Quem se deu melhor, por causa dos feitos do ex-presidente: os pobres que “começaram a andar de avião” ou a turma que comprou jatinho? O “trabalhador brasileiro” ou Sérgio Cabral, Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima e tantos outros aliados íntimos do Complexo Lula-PT?

A decisão do STF não faz desaparecer esse Brasil do mal — nada, isoladamente, tem a capacidade de fazer tanto. Mas pôs uma barreira, sem dúvida, ao avanço de todos os que querem, através da desmoralização aberta da lei, impedir que este país se torne uma democracia de verdade.

Publicado em VEJA de 11 de abril de 2018, edição nº 2577

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