Carta ao Leitor: Um basta aos privilégios
A desigualdade estará entre os temas da campanha presidencial de 2022, e com uma novidade: não será monopólio dos partidos de esquerda
A desigualdade social é uma chaga mundial e vergonhosa, resultado da atávica incapacidade da civilização, ao longo da história, de tornar mais estreito o vão que separa as camadas ricas da sociedade das porções mais pobres. Um nítido e constrangedor retrato é o da China, nação oficialmente comunista, mas de mercado aberto ao planeta. Por lá, há bilionários que perambulam pelas lojas de grife da Champs-Élysées, em Paris, ou da Park Avenue, em Nova York, ao lado de miseráveis que passam fome em cantões recônditos. É desnecessário reavivar a imagem assustadora do fosso escancarado entre a riqueza dos vendedores de diamantes na África do Sul (brancos) e a pobreza dos cidadãos dos barracos de Soweto (negros), em Johannesburgo. O Brasil, como é sobejamente sabido, tem triste figura nesse desenho, frequentemente citado como mau exemplo — e até hoje ecoa a fotografia feita em 2004, divulgada aos quatro ventos, ao revelar a discrepância das varandas luxuosas de um edifício da Zona Sul de São Paulo debruçado sobre os barracos da favela de Paraisópolis. De lá para cá, quase nada mudou. O estrato do 1% de brasileiros mais ricos concentra atualmente um terço da renda no país.
A pandemia do coronavírus, ao congelar a economia e aprofundar o desequilíbrio, abriu uma nova janela de oportunidade de discussão responsável em torno da questão — e, convém sublinhar, nunca é tarde para levá-la ao centro dos debates. A desigualdade será tema das eleições municipais, ainda neste ano, e, com certeza, um assunto primordial da campanha presidencial de 2022. Com uma novidade: não será mais monopólio dos partidos de esquerda, que usaram a defesa de uma causa como álibi para cometer barbaridades do ponto de vista de gestão e de falta de respeito ao dinheiro público, transformando-o em graxa da corrupção.
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Clique e AssineNa página 48, os leitores poderão conferir uma reportagem especial com algumas das principais tendências e autoridades mundiais em desigualdade. Numa das entrevistas, o economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, conceituado pensador liberal, diz que lidar com o problema deixou de ser uma possibilidade — trata-se de uma obrigação das forças que comandam ou pretendem comandar a nação. “Não há contradição entre os objetivos de crescer e, simultaneamente, distribuir renda no Brasil”, explica Fraga. VEJA entrevistou também o francês Thomas Piketty, autor do recém-lançado Capital e Ideologia. O economista, que causou polêmica ao publicar seu primeiro livro, disse ao editor Ernesto Neves: “Nada justifica o abismo atual. Deixamos uma parcela enorme de pessoas fora do sistema educacional, da rede de saúde e do crescimento econômico”.
O fato inequívoco é que existe uma grande distorção, e não há, naturalmente, apenas um caminho para solucioná-la — daí a relevância da circulação de ideias e de alternativas que ajudem a alcançar o desejado equilíbrio. Nesse aspecto, a discussão de uma reforma tributária, a urgente prioridade do governo Bolsonaro para o resto de 2020, é passo fundamental, ao propor ideias como o chamado imposto de renda negativo — a transferência de uma parte da arrecadação para uma conta de aposentadoria dos trabalhadores autônomos menos favorecidos. É importante ressaltar que o resultado de uma distribuição mais equânime pode, sim, beneficiar a todos. O viciado modelo em que uns sempre ficam com generosos pedaços do bolo e os outros com migalhas é atalho para insegurança, violência, educação precária e conflitos. Não pode ser assim, e os brasileiros conscientes, independentemente de ideologia, precisam abraçar um projeto que nos leve a um inédito patamar civilizatório. Esse momento, que vai exigir o combate a privilégios de longa permanência, chegou.
Publicado em VEJA de 22 de julho de 2020, edição nº 2696