“Em se plantando tudo dá”, uma das conhecidíssimas frases de Pero Vaz de Caminha na carta ao rei dom Manuel, em 1º de maio de 1500, talvez tenha sido a primeira e equivocada impressão de que, no Brasil, de ponta a ponta, as possibilidades seriam equivalentes, independentemente das regiões, dos diferentes climas e, com o passar dos séculos, de variados modos de crescimento econômico e ocupação. A trupe de Pedro Álvares Cabral tomava a parte pelo todo, embora, naturalmente, houvesse pisado apenas no chão da Bahia. Nem tudo, porém, em se plantando dá. Em um país de dimensões continentais, é fundamental o olhar cuidadoso, particular e minucioso de cada canto do território — e talvez nunca, como agora, durante a pandemia do novo coronavírus, o mosaico se revele tão pulverizado e sua compreensão tão necessária para a solução do problema.
Há vários Brasis num só. A estatística mostra que, na terça-feira 30 de junho, exatos seis meses depois da eclosão do vírus na China, havia no Brasil 1,4 milhão de casos e quase 60 000 mortes. A incidência era de 667 infectados para cada grupo de 100 000 pessoas e 28 óbitos diante de igual contingente. Em uma semana, houve aumento de 15% de testes positivos — e queda de 6% na mortalidade. Há, contudo, discrepâncias enormes quando são analisadas, separadamente, as unidades da federação. Em São Paulo, por exemplo, o número de mortes caiu 12%, atalho para otimismo e estrada para a retomada do cotidiano possível. Em contrapartida, em Goiás, deu-se triste salto de 74% na letalidade em espaço de sete dias. O Amazonas, que há dois meses era sinônimo de tragédia incontornável, começa a caminhar — as mortes se estabilizaram e um dos hospitais de campanha até foi fechado.
De modo a iluminar esse leque de variações, uma reportagem especial desta edição de VEJA mergulhou nos números de cada estado, minuciosamente — o modelo correto e científico, do ponto de vista epidemiológico e de saúde pública, de interpretar a intermitente valsa de abre e fecha da quarentena. Não há dúvida de que uma única vítima da pandemia é relevante, e não por acaso houve justificada comoção com o anúncio da primeira morte brasileira, no longínquo mês de março — no entanto, exige-se agora uma análise acurada para identificar onde a situação está melhorando e onde não está. Dada sua grandiosidade, o Brasil pode ser comparado aos Estados Unidos e à China — mas não à Alemanha e à Nova Zelândia. Na semana passada, enquanto Nova York respirava, o Estado da Flórida foi obrigado a recuar na abertura. Normal. Em janeiro, Wuhan, onde tudo começou, estava trancada — e Pequim, totalmente aberta. Hoje, o movimento é inverso, com bloqueios e testes em massa na capital e liberdade na província de Hubei. Faz sentido. São realidades diferentes, separadas por milhares de quilômetros.
Assim será por aqui também. Mas a multiplicidade, que irá demonstrar a melhora do quadro de Covid-19 em alguns estados, não apaga o péssimo desempenho do governo federal no combate à pandemia. Ao se comportar infantil e irresponsavelmente em relação ao surto, que tratou como uma “gripezinha”, o presidente Jair Bolsonaro apenas alimentou a inepta guerra política com as autoridades municipais e estaduais, às quais deveria liderar e coordenar. Todos ganhariam com isso e mais vidas seriam poupadas. Resultado: a imagem do país no exterior no que diz respeito à pandemia é a pior possível. Embora para diagnosticar e solucionar o problema não se possa tomar o todo pela parte, da perspectiva de quem olha de fora o que vale é a totalidade. Não por acaso, brasileiros — de qualquer estado, claro — não podem entrar livremente nos Estados Unidos e na Europa, como mostra outra reportagem desta edição. É o preço que pagamos pelo descuido e pela tradução torta dos dados divulgados. Felizmente, vamos superar este momento, sem nunca deixar de lamentar aqueles que se foram.
Publicado em VEJA de 8 de julho de 2020, edição nº 2694