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“Eleger Bolsonaro foi um erro”, diz padre processado pelo presidente

Considerado “rebelde” pela ala conservadora da Igreja Católica, Júlio Lancellotti acredita que “ninguém deve votar pensando somente em si”

Por Thais Gesteira e Maria Clara Vieira
Atualizado em 2 set 2020, 09h54 - Publicado em 31 ago 2020, 15h07

“Rebelde”, assim é conhecido o padre Júlio Lancellotti, da paróquia São Miguel Arcanjo, da Arquidiocese de São Paulo. Acusado diversas vezes pelas alas mais tradicionais da Igreja Católica de ir contra o bom comportamento do cristianismo, o sacerdote, de 71 anos, dedica-se, há 35, a apoiar os mais vulneráveis. Em sua trajetória, além de pessoas em situação de rua, já realizou trabalhos com a população LGBTQI+, pessoas com HIV e jovens encarcerados. Ativista dos direitos humanos, o presbítero é, constantemente, vítima de ameaças e já foi, até mesmo, processado pelo presidente Jair Bolsonaro – enquanto ele ainda era deputado – por chamá-lo, durante discurso religioso, de ‘racista, machista e homofóbico’. Apesar disso, o pároco não abre mão de se posicionar politicamente, especialmente quando trata-se de defender as minorias. Em conversa com a VEJA, o padre Lancellotti fala sobre pecado, marxismo e conservadorismo.

Em junho, viralizou na internet um vídeo do padre Edson Adélio Tagliaferro, de Artur Nogueira no interior de São Paulo, dizendo que quem votou no presidente Jair Bolsonaro cometeu um pecado e deveria se confessar. O senhor acredita nisso? Penso que é uma linguagem religiosa usada para chamar atenção para a responsabilidade social dos seus atos. Para que algo seja pecado, segundo a doutrina católica, você precisa saber que algo é errado, ter liberdade de optar, saber as consequências e ainda fazê-lo. Eu nunca vi ninguém confessar que apoiou uma forma política, econômica e social que causou a fome de tantos. Ninguém virá no confessionário falar que votou no Bolsonaro, mas é necessário entender que as nossas escolhas têm consequências e ninguém deve votar pensando somente em si, mas pensando nos indígenas, nos quilombolas, na comunidade LGBTQI+, nos desempregados.

Muitos católicos votaram no presidente por conta da agenda contra o aborto, algo bastante caro para a Igreja Católica. Não é um argumento plausível? Acredito que essa desculpa de que votou em alguém por causa de aborto é uma cortina de fumaça. Ninguém está pensando em aborto na hora de votar, é uma falsa bandeira. Que ótimo a pessoa ser contra o aborto, mas ela protege e defende as mulheres violentadas? Sabe se o candidato em questão é misógino e acha que feminicídio é invenção da esquerda? A discussão sobre o tema não pode ser desvinculada do corpo, da dignidade e da vida da mulher. Isso é uma cortina de fumaça moralista que empobrece a discussão, usada por neopentecostais para enganar o povo.

O senhor acredita que essas pautas morais não são caras para os eleitores? A sociedade em muito já se emancipou do moralismo. Em algumas eleições passadas, falar de camisinha ou anticoncepcional era uma celeuma. Hoje, ninguém liga mais. Acho que essa coisa moral é uma bela desculpa para esconder o neofascismo, o autoritarismo e o rechaço aos pobres. Se a pessoa diz “eu sou contra o aborto, mas não me importo que mate os índios. Eu sou contra o aborto, mas não sou contra o genocídio da juventude negra. Eu sou contra o aborto, mas não sou contra a higienização racial”, tem alguma coisa de errada nisso. Se eu sou contra o aborto, eu sou contra toda a forma de violência, porque aquele que não foi abortado, agora é chacinado.

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Muitos movimentos de esquerda – como a própria teologia da libertação – têm sua base no marxismo, que deu origem a muitos regimes que se opuseram à Igreja Católica. Não é compreensível que seja visto com restrição? É a mesma coisa que a China descobrir a vacina para o novo coronavírus e a gente dizer “não vamos tomar porque os chineses são comunistas”. O marxismo tem pontos que diferem da doutrina cristã, mas não é o inventor da luta de classes. Hoje, em alguns países, priorizamos o capital à vida. Nós temos instrumentos de análise da realidade e o marxismo é um deles, não cabe a nós negar o método porque foi utilizado por uma ideologia inadequada. Seria o mesmo que não aceitar nenhum princípio humanista do iluminismo francês porque eles eram anticlericais, rejeitar a psicanálise porque (Sigmund) Freud era ateu ou a relatividade de (Albert) Einstein porque não era católico. Levando tudo ao pé da letra, eu não poderia ler Jorge Amado, Érico Veríssimo, Victor Hugo. Seria um avestruz enterrado com a cabeça no chão.

Os setores conservadores na Igreja têm crescido muito – um movimento expresso, inclusive, no aumento da procura por missas em latim. O que pode estar por trás disso? As pessoas estão buscando segurança. O maior medo que nós temos é o medo da liberdade, de sermos responsáveis pelas nossas escolhas. Eu acho que as pessoas gostam da missa em latim porque não entendem nada; não se comprometem e ficam no devocionismo, negando o cerne do evangelho. Alguém em sã consciência diz que, no seu imaginário, Jesus era contra as mulheres, defendia os poderosos e a riqueza? Quem tem fé cristã sabe muito bem que não. A solidariedade, a compaixão e a misericórdia não são questões religiosas, mas questões humanas.

O senhor foi atacado nas redes por posar ao lado de uma mãe de santo. As críticas incomodam? Não, eu peço a benção a todas as mães de santo. Temos que ter o compromisso de apoiar e defender as religiões de matriz africana, não importa o conteúdo delas. Defender as religiões de matriz africana, judeus, budistas, ou seja, o debate ecumênico, é fundamental na compreensão da igreja e do cristianismo.

Como avalia as críticas sofridas pelo Papa Francisco? O Santo Padre tem mais importância fora da Igreja do que dentro dela, e acho que corre mais risco no Estado do Vaticano que no Estado Islâmico, por causa desse conservadorismo, esse sectarismo que faz as pessoas se acharem melhores que as outras. O Papa Francisco é uma pessoa simples e aberta, e fazem com ele como fizeram com São Francisco: ninguém andava atrás dele soltando passarinhos. Sentiam raiva dele e o maltratavam porque ele contestava a burguesia.

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O senhor continua a receber ameaças pelo seu trabalho? Outro dia desses eu recebi uma mensagem no Instagram que dizia “você só fala coisas que são contra a fé, vai queimar no inferno”, eu respondi “você é procurador de Deus?”. Mas acho que desde que começou a pandemia, o comportamento das pessoas mudou. Antes, quando eu estava na rua ajudando os pobres, as pessoas me chamavam de vagabundo. Hoje elas buzinam e fazem sinal de positivo. Acredito que, nesse momento, nossa fé e coerência foram postas à prova e nós permanecemos.

Sendo integrante do grupo de risco, não tem medo de continuar nas ruas? A gente sente preocupação, mas, com todos os cuidados, o trabalho não pode parar.

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