Jair Bolsonaro é um especialista em alimentar polêmicas e gerar crises. O que não se sabe até hoje é se ele faz isso de maneira pensada como estratégia para desviar a atenção sobre questões realmente relevantes ou se age movido por uma lógica peculiar. Nos últimos dias, o chefe do Executivo tem disparado insultos em série contra o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso. O ministro já foi chamado publicamente de “idiota”, “imbecil”, “semideus” e “dono da verdade”. Reservadamente, os adjetivos dispensados são ainda mais grosseiros. A fúria se deve ao fato de Barroso agir contra a cruzada do presidente pelo retorno do voto impresso, a única maneira, segundo o ex-capitão, de impedir um suposto esquema que estaria em curso para fraudar as eleições do ano que vem e que teria o próprio Barroso como um dos interessados — uma acusação tão grave quanto estapafúrdia.
Cobrado a apresentar provas, Bolsonaro fez uma live de mais de duas horas em que admitiu ter apenas “indícios” do tal plano e, sem citar Barroso, fez a insinuação: “É justo quem tirou Lula da cadeia, quem o tornou elegível, ser o mesmo que vai contar o voto numa sala secreta no TSE?”. A temperatura subiu. O contra-ataque de Barroso veio em diversas frentes. O ministro costurou uma carta pública, assinada por ex-presidentes e atuais integrantes do tribunal, em defesa do sistema eletrônico de votação. Também articulou uma espécie de censura pública que foi embutida num discurso do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux. Na corte eleitoral, a reação foi mais forte. Por unanimidade, os ministros decidiram abrir um inquérito para apurar as declarações de Bolsonaro. “As pessoas podem não confiar nas urnas eletrônicas, como tantos não creem em Deus. O que não se admite é que se criem factoides falsos a dar robustez a uma farsa qualquer que atente contra a democracia”, disse a VEJA, reservadamente, um ministro do TSE.
Os magistrados também pediram ao Supremo que a live seja incluída no inquérito das fake news, o que na prática coloca o presidente da República oficialmente na mira da investigação conduzida pelo ministro Alexandre de Moraes, que vai comandar o TSE durante as próximas eleições de 2022. Ao acolher o pedido, o ministro apontou indícios do cometimento de onze crimes por Bolsonaro, entre eles calúnia, difamação e injúria. A investigação das fake news, que já dura mais de dois anos, foi instaurada em 2019 para apurar ameaças aos ministros do STF. Também na mira dos ataques de Bolsonaro, Moraes se tornou outra pedra no sapato do presidente: nos bastidores, assumiu um papel silencioso, mas relevante na articulação contra o avanço do voto impresso, marcando uma série de conversas com lideranças partidárias para convencê-las dos riscos de retrocesso.
Não por coincidência, um dia depois da live de Bolsonaro, Moraes destravou o inquérito do STF que investiga a interferência indevida do presidente da República na Polícia Federal. A Procuradoria-Geral da República (PGR) já sinalizou que pretende arquivar o caso, mas a investigação serve como mais um instrumento de pressão contra o Planalto. Em julgamentos passados, Barroso já negou o registro de candidatura a Lula e votou a favor da prisão do petista. Na época, o então deputado Wadih Damous, do PT, disse que Barroso era “o pior ministro do STF” e “um mal para a democracia”. Não há a menor dúvida de que o grande mal para a democracia brasileira tem sido, na verdade, a polarização política.
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2021, edição nº 2750