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Ressentimento atrasa papel de Lula como estadista, diz cientista político

José Álvaro Moisés elogia investimentos do governo na área social e internacional, mas diz que o petista perde espaço de autoridade ao manter tensionamento

Por Marcela Mattos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 1 abr 2023, 16h37

A retórica política mais voltada para o passado do que para o futuro faz com que o presidente Lula perca um espaço que poderia guindá-lo como um estadista autônomo e com mais liberdade, avalia José Álvaro Moisés, professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP). Em declarações recentes, o petista dedicou-se a atacar o senador Sergio Moro, ex-juiz responsável pela Operação Lava-Jato, que o condenou a cumprir prisão na superintendência da Polícia Federal em Curitiba. O presidente também vem mirando a artilharia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e contra o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. “O presidente tem de estar numa posição de um estadista que dialoga com outra autoridade, e não hostilizar, criticar, fustigar o outro lado. Isso não produz nenhum resultado positivo para os seus objetivos econômicos”, avalia Moisés. Confira abaixo outros trechos da entrevista:

Qual a sua avaliação sobre esses quase 100 dias de governo? Em primeiro lugar, o governo tomou uma série de iniciativas importantes em áreas estratégicas, que por um lado respondem a promessas de campanha, e por outro respondem a áreas de extrema necessidade do país. São referentes à retomada de uma atuação internacional, às políticas de meio ambiente e com os povos originários e às políticas sociais, principalmente com o relançamento do Bolsa Família e do Minha Casa, Minha Vida. O segundo ponto é que o sucesso dessas iniciativas depende de como a economia será reorganizada. Essas políticas dependem de recursos e de muitas áreas em que o governo tem de poder navegar sem obstáculos. Para isso, a política econômica é fundamental.

E no terreno econômico, está funcionando? Nesta área, talvez o governo pudesse ter sido mais ágil, mais rápido. O arcabouço fiscal, que foi elaborado pelo ministro Fernando Haddad e que tudo indica que vai ser um instrumento bastante eficaz até para definir em que direção vai a política econômica do governo, só agora foi anunciado, o que deixou uma parte da sociedade, principalmente o mercado, numa posição de expectativa, de não saber em que direção nós estamos indo.

As políticas econômicas dependem de aprovação. Como o senhor vê a relação do governo com o Congresso? O presidente Lula está retomando a estrutura do presidencialismo de coalizão. Na minha opinião, o governo e o PT não fizeram uma leitura crítica dos problemas que esse sistema envolve. Embora fosse difícil mudar completamente, acho que o governo devia sinalizar uma perspectiva de mudar a dimensão dessa estrutura. Os presidentes, num contexto de multipartidarismo, ficam subordinados à participação dos partidos e às exigências que eles trazem. Os partidos passam a fazer parte da coalizão de governo, mas isso os levam a ter uma capacidade de interferir no processo. São os jogadores que entram e cobram um preço pela sua participação – o que, às vezes, resvala em corrupção e é ruim para o país.

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Há muitas críticas às falas destemperadas do presidente. O que o motiva a agir dessa maneira? O presidente mantém uma retórica política que está mais voltada para o passado do que para o futuro. Ele paga um preço por um certo ressentimento, cobra muito mais os atores olhando para o passado e com isso perde um espaço que poderia projetá-lo como um estadista mais autônomo, independente e com mais liberdade. A essa altura dos acontecimentos, o Lula não precisa mais se contrapor ao Sergio Moro nem mesmo ao ex-presidente Jair Bolsonaro. O que ele precisa é operar uma pacificação com a sociedade brasileira.

Como isso seria possível? Ele não pode esquecer que a eleição dividiu o Brasil em duas partes equivalentes. É muito importante que ele adote alguns princípios que ele mesmo anunciou depois da eleição, principalmente o de governar para todos. Isso é possível se o presidente olhar para os segmentos que inclusive votaram contra ele e não prosseguir nas fendas de hostilidade em relação a uma série de setores. Não deve, sobretudo, ocupar espaço de contenda pública, como fez no caso do Banco Central. O BC é uma instituição extremamente importante para o país e, por decisão do Congresso Nacional, é independente e autônoma. O presidente tem de estar numa posição de um estadista que dialoga com outra autoridade, e não hostilizar, criticar, fustigar o outro lado. Isso não tem nenhum resultado positivo para os objetivos econômicos.

Qual a consequência mais imediata desse comportamento? Esse comportamento sinaliza para a manutenção uma divisão, e isso não é bom para o próprio governo. Na verdade, deixa o governo em uma posição como se tivesse dizendo que essa divisão de 50% de cada lado não tem alternativa, que tem que ser assim.  E nós sabemos que há um contingente muito grande de eleitores que votaram no Bolsonaro não porque são bolsonaristas nem porque são de extrema-direita, mas porque tinham críticas às políticas do PT. Em relação a esses segmentos, o governo tem de ter uma disposição de dialogar e de promover políticas que atendam às perspectivas deles.

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O Lula, por outro lado, foi eleito com o voto antibolsonarista. Manter essa constante polarização não poderia ser um ativo político para ele? Acho que é um equívoco se essa análise prevalecer, porque a sociedade brasileira é muito mais complexa do que isso. E essa ideia de que você mantém a polarização para poder de alguma maneira estar numa posição de predomínio e de prevalência é equivocada. O governo, ao invés de conquistar áreas novas, perde apoio.

Qual a importância dos 100 primeiros dias de governo? Com base em como o governo inicia a sua administração, ele anuncia o que vão ser os próximos quatro anos. Por isso considero que deve haver o reconhecimento de alguns aspectos positivos do governo ao anunciar medidas em áreas importantes e estratégicas. Agora, tem também os outros aspectos que não são positivos e que de alguma maneira estão dando uma indicação de que o governo talvez vá ter algumas dificuldades nos próximos quatro anos. Se não ficar claro qual caminho o governo vai adotar em relação à retomada da economia, da melhoria da renda média e do enfrentamento ao desemprego, de alguma maneira é uma indicação de que nos próximos quatro anos nós teremos hesitações, dúvidas e não propriamente políticas positivas nessa área.

O que significa, para o governo, a volta de Bolsonaro ao Brasil? O Bolsonaro quer ter um papel de liderança na oposição e na manutenção de um segmento de extrema-direita, que foi a novidade que surgiu no Brasil de 2018 para cá. Agora, ele também vai ter de dar muitas explicações. E não apenas pelo fato de ter saído do Brasil assim que perdeu as eleições, o que alguns interpretam como se tivesse sido uma fuga da realidade. Ele vai ter que se explicar sobre o fato de ter incentivado atitudes dos seus apoiadores que levaram ao que aconteceu no dia 8 de janeiro, vai ter de explicar a questão das joias. Há, ainda, uma coincidência importante: a chegada dele coincide com o momento em que o Brasil ultrapassa as 700 mil mortes por conta da Covid-19. Esse é um legado que ele carrega nas costas sobre o qual ainda vai ter que responder.

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Aliados dizem que Bolsonaro vai se dedicar a rebater as políticas do atual presidente, principalmente as econômicas, como o preço da gasolina. O governo do ex-presidente ficou muito deficitário. Ele não tem muito o que cobrar o que está acontecendo agora porque o governo Lula tem apenas três meses. Neste período, não dá para enfrentar todas as questões que foram deixadas. Talvez a marca mais positiva do Lula é que ele encarou a necessidade de reconstruir todas as coisas que tinham sido destruídas pelo governo Bolsonaro. Não é pouca coisa, eu acho. Essa é a verdadeira herança maldita.

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