A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, avalia que a declaração do presidente Jair Bolsonaro sobre o desaparecimento de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira – pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz – “reveste-se de enorme gravidade, não só pelo atrito com o decoro ético e moral esperado de todos os cidadãos e das autoridades públicas, mas também por suas implicações jurídicas”.
Na segunda-feira, 29, Bolsonaro afirmou que poderia “contar a verdade” sobre a morte do pai de Santa Cruz. Em seguida, o presidente apresentou uma versão sobre o desaparecimento que não tem respaldo em informações oficiais.
Em nota pública, o órgão do MPF diz que o crime de desaparecimento forçado é permanente, ou seja, a sua consumação persiste enquanto não se estabelece o paradeiro da vítima. “Qualquer pessoa que tenha conhecimento de seu destino e intencionalmente não o revela à Justiça pode ser considerada partícipe do delito”, afirma o comunicado assinado pela procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, e pelo procurador-adjunto Marlon Weichert.
Ainda de acordo com os dois procuradores, “o desaparecimento forçado por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado, é uma grave violação aos direitos humanos, conforme estabelecem duas convenções internacionais promulgadas e ratificadas pelo Brasil”.
A Procuradoria informou que “o desaparecimento forçado é um dos crimes internacionais que merece a mais severa sanção, posto que reúne diversas ações ilícitas que se originam com a prisão ou detenção ilegal, perpassam a prática de tortura, falsidade sobre o paradeiro, subtração de provas, obstrução da Justiça e, quase sempre, culmina no homicídio e na ocultação de cadáver”.
“Qualquer autoridade pública, civil ou militar, e especialmente o Presidente da República, é obrigada a revelar quaisquer informações que possua sobre as circunstâncias de um desaparecimento forçado ou o paradeiro da vítima”, diz a nota.
Crime contra a humanidade
No documento, a Procuradoria relembra que o Brasil foi condenado em duas oportunidades – nos casos Vladimir Herzog e Gomes Lund – pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela prática de crimes contra a humanidade e de graves violações aos direitos humanos durante a ditadura militar, sentenças nas quais foi determinado que o Estado promovesse a investigação, o julgamento e a punição pelos crimes de desaparecimento forçado de pessoas, execuções sumárias e tortura.
A Procuradoria afirmou que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) produziu um relatório que é um “documento legal”, feito para “elucidar fatos que possuíam versões conflitantes, conferindo a expressão da ‘verdade estatal’, a qual deve ser observada pelos órgãos da administração pública”.
Nesta terça-feira, 30, Bolsonaro afirmou que não existem documentos que possam comprovar como ocorreu a morte do pai de Felipe Santa Cruz e classificou os arquivos oficiais sobre mortos e desaparecidos durante a ditadura militar, produzidos pela CNV, como “balela”.
Na nota, a Procuradoria ressalta que o desaparecimento forçado de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira foi investigado pela CNV, e, anteriormente, pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos e pela Comissão de Anistia.
À época, o pai do presidente da OAB era funcionário público, com emprego fixo e integrava a Ação Popular. Ao contrário de outros militantes da época, não estava na clandestinidade, diz a Procuradoria. “Também não consta registro nessas comissões de que tivesse tido participação em algum ato da luta armada.”
Fernando foi visto pela última vez quando deixou a casa de seu irmão, no Rio, em 23 de fevereiro de 1974. Provavelmente, foi preso junto com Eduardo Collier Filho por agentes do DOI-CODI do I Exército e, em momento incerto, transferido para o DOI-CODI do II Exército, em São Paulo, à época dirigido por Carlos Alberto Brilhante Ustra. A suspeita é que Fernando Augusto “tenha sido assassinado na Casa da Morte, em Petrópolis (RJ)”.
A CNV, diz a Procuradoria, concluiu que Fernando Santa Cruz foi “preso e morto por agentes do Estado brasileiro e permanece desaparecido, sem que os seus restos mortais tenham sido entregues à sua família. Essa ação foi cometida em um contexto de sistemáticas violações de direitos humanos perpetradas pela ditadura militar instaurada no Brasil em abril de 1964”.
A Procuradoria diz que “não é a primeira vez que o presidente da República se manifesta em aprovação à violação de direitos humanos na ditadura militar”. Para o órgão do MPF, as declarações de Bolsonaro são graves porque “a responsabilidade do cargo que ocupa impõe ao Presidente da República o dever de revelar suas eventuais fontes para contradizer documentos e relatórios legítimos e oficiais sobre os graves crimes cometidos pelo regime ditatorial”.
“Essa responsabilidade adquire ainda maior relevância no caso de Fernando Santa Cruz, pois o presidente afirma ter informações sobre um crime internacional que o direito considera em andamento.”
A Procuradoria conclui a nota afirmando que não há sigilo sobre esses dados, conforme a Lei de Acesso à Informação”, e que a Constituição “exige do Chefe de Estado que aja com moralidade, legalidade, probidade e respeito aos direitos humanos”.