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Pandemia eleitoral: a insensibilidade de Brasília ao drama do coronavírus

Teorias da conspiração, troca de acusações, disputa por cargos e bravatas permeiam a crise

Por Daniel Pereira, Thiago Bronzatto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Laryssa Borges Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 24 abr 2020, 10h35 - Publicado em 24 abr 2020, 06h00

A foto que abre esta reportagem revela um candidato em ação. Um candidato a autocrata, que participa de uma manifestação a favor da intervenção militar e do fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF). Um candidato à reeleição, que radicaliza o discurso com o objetivo de reagrupar sua base de apoio, cada vez mais titubeante nas redes sociais. Um candidato a incendiário-geral da República, que dobra a aposta no confronto quando se espera dele que lidere o país e unifique os esforços destinados a atenuar os efeitos da pandemia do novo coronavírus. Ao subir numa caminhonete em frente ao quartel-general do Exército em Brasília, no domingo 19, Jair Bolsonaro encenou todos esses papéis, menos o mais importante: o de presidente. Sua atitude provocou as reações de repúdio de praxe — a maioria delas, aliás, pautada pelos mesmos interesses politiqueiros, num período em que a energia dos poderosos deveria se concentrar em um único propósito: salvar vidas. A magnanimidade, porém, é virtude rara.

Desde o início de seu mandato, Bolsonaro radicaliza e depois recua, radicaliza e depois recua, testando os limites das instituições. Diversionista por natureza, sempre elege adversários de ocasião para não ter de dar explicações sobre os muitos problemas de sua administração. Em plena pandemia, ele passou a atacar o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), sob o pretexto de que o deputado patrocina uma pauta-bomba para desestabilizar o governo. A preocupação presidencial, no entanto, vai além disso. Bolsonaro suspeita que Maia — com o apoio de ministros de tribunais superiores — possa abrir um processo de impeachment contra ele. Por isso conclamou sua soldadesca a bater sem dó no parlamentar, a fim de intimidá-lo. Bolsonaro também iniciou uma operação para esvaziar a influência do desafeto sobre os deputados e impedir que ele se reeleja à presidência da Câmara no ano que vem. Pelas normas atuais, Maia e o comandante do Senado, Davi Alcolumbre (DEM), não podem disputar o cargo em 2021, mas ambos, também guiados por interesses pessoais, agem nos bastidores para mudar a regra do jogo.

Em sua cruzada, o presidente desmoralizou de vez seu discurso contra o toma lá dá cá e se rendeu às negociações com partidos conhecidos por mercadejar seu apoio em troca de cargos e outras benesses. Entre eles, o PP do petrolão, o PL do mensalão e o Republicanos, a nova sigla de Flávio e Carlos Bolsonaro. Com sete mandatos de deputado no currículo, Bolsonaro conhece bem o apetite dessa turma, tanto que está oferecendo a essas legendas o controle, entre outros, do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), cujos orçamentos neste ano são de, respectivamente, 54 bilhões de reais e 1 bilhão de reais. A meta é montar uma base parlamentar contra um eventual processo de impeachment. Em suas negociações com a velha política, o presidente mostrou simpatia pelas pré-candidaturas ao comando da Câmara de Arthur Lira (PP), denunciado na Operação Lava-Jato, e de Marcos Pereira (Republicanos), delatado pelo empresário Joesley Batista. Fez isso dias antes de declarar, no comício antidemocrático de domingo passado, coisas como “acabou a época da patifaria, é agora o povo no poder” e “não queremos negociar nada”.

Rodrigo Maia queixa-se de que Paulo Guedes o agride porque é autoritário, está completamente perdido, não tem proposta e não sabe como fazer para tirar o Brasil da crise (Andre Borges/NurPhoto/ZUMA Press/EFE)

Em entrevista a VEJA, publicada na edição passada, Rodrigo Maia afastou a possibilidade de abrir um processo de impeachment. É fato, no entanto, que discussões sobre o assunto ganharam fôlego em Brasília, inclusive dentro de um grupo apelidado de “resistência democrática”, que reúne congressistas, ministros do STF e integrantes do Tribunal de Contas da União (TCU). Há tempos eles conversam sobre quais estratégias Bolsonaro pode empregar para se segurar no cargo — por exemplo, mandar o ministro da Justiça, Sergio Moro, perseguir adversários — e sobre como seria um governo do vice Hamilton Mourão. O grupo, que quer a reeleição de Maia na Câmara, não descarta o seguinte cenário: nos próximos meses, haverá um salto no número de mortos pela Covid-19 no Brasil e os impactos negativos da crise no bolso das pessoas se tornarão mais contundentes. Assim, a popularidade do presidente, hoje na casa dos 30%, poderá cair a ponto de abrir caminho para um processo contra Bolsonaro. De nada adiantaria ao presidente culpar os governadores pela derrocada econômica.

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“Como se diz na minha terra, tem uma hora que o problema é federal”, afirmou a VEJA um ministro que faz parte da tal “resistência democrática”. Pela Constituição, um processo de impeachment requer a ocorrência de um crime de responsabilidade. Pode ser só coincidência, mas órgãos de controle já mandaram recados à equipe econômica sobre os riscos da utilização de bancos públicos para o pagamento, por exemplo, do auxílio emergencial de 600 reais a trabalhadores informais. O ministro Paulo Guedes e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, ouviram que a falta de cobertura pelo Tesouro Nacional pode levar a uma futura rejeição da prestação de contas do presidente — e que isso poderia ser o estopim para a cassação do mandato. “Antes era Guerra Fria. Agora virou batalha campal”, diz outro integrante do grupo. Nessa selva de pedra, a briga entre Bolsonaro e Maia é insuflada por Paulo Guedes, o czar da economia. O ministro e o deputado começaram a se estranhar durante a tramitação da reforma da Previdência, quando Guedes recomendou ao povo dar uma prensa no Legislativo.

O ministro Paulo Guedes rebate dizendo que Rodrigo Maia deseja apenas o protagonismo, não trabalha e que, se quisesse, acabaria com o deputado em cinco minutos (Alan Santos/PR)

No fim do ano passado, o Congresso aprovou uma lei que tirava do Executivo e passava para o Legislativo o controle de 30 bilhões de reais do Orçamento da União. Em conversas reservadas, Guedes reclamou: “Impressionante, né? Para aprovar 30 bilhões de reais, Rodrigo Maia fez tudo isso em um dia. Para arrumar a grana deles, é rápido. Mas para quem precisa demora”. A animosidade cresceu diante da cobrança de Maia para que Guedes enviasse ao Parlamento as propostas do governo das reformas tributária e administrativa. Com a pandemia do coronavírus, houve uma tentativa de armistício. O ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, convocou Maia e líderes partidários para uma reunião com Guedes, o presidente do Banco Central e o então ministro da Saúde Henrique Mandetta sobre a pandemia, o único tema que, segundo o presidente da Câmara, unia o governo ao Congresso naquele momento. Deu tudo errado.
No encontro, Guedes repetiu apenas seu mantra a favor das reformas. Maia retrucou: “Paulo, e o setor aéreo, que vai parar daqui a alguns dias? Como vocês vão resolver esse problema? E o setor de bares e restaurantes?”. O ministro nada respondeu na hora. No dia seguinte, em entrevista a VEJA, Guedes declarou que com 3, 4, 5 bilhões de reais o governo aniquilaria o coronavírus. Maia reproduziu essa frase em seu Twitter para sugerir que o ministro não tinha a dimensão do problema. Guedes reagiu mandando uma mensagem ao parlamentar: “Você me colocou numa armadilha naquela reunião com os deputados”. Maia retrucou: “Combinei com o Jorge uma reunião sobre coronavírus, e você foi lá tratar de reforma. Não te botei em armadilha nenhuma”. A partir daí, a situação degringolou. Guedes defendeu uma proposta de auxílio emergencial de 200 reais a trabalhadores informais, mas Maia convenceu os deputados a subir o valor para 500 reais. No fim, para garantir a paternidade da bondade, Bolsonaro bateu o martelo em 600 reais.

Davi Alcolumbre negocia nos bastidores uma forma de mudar o regimento do Senado para permitir a reeleição dele ao cargo de presidente do Congresso sem que isso pareça casuísmo (Leopoldo Silva/Ag. Senado)

Com o valor definido, Guedes aventou a possibilidade de só pagar caso fosse aprovada uma emenda constitucional autorizando o gasto. Maia reagiu, disse que não era necessário e venceu a queda de braço. O presidente da Câmara ainda organizou a aprovação de uma emenda constitucional, a PEC do Orçamento de Guerra, para tirar as amarras ao gasto público durante a pandemia. A proposta só foi analisada pelo Ministério da Economia depois de muita insistência do deputado. “O Guedes está completamente perdido. Não tem proposta. Não sabe como sair da crise. Tem atrapalhado o governo. Muitas pessoas do palácio têm a mesma opinião”, disparou Maia numa conversa reservada. “Na reunião que o ministro Luiz Eduardo Ramos fez com líderes de partidos, ele não deixou o Guedes ir, porque achava que o Guedes ia piorar a relação do Parlamento com o governo”, acrescentou. O ministro reage principalmente nos encontros com Bolsonaro. Neles, alega que o deputado é peça-chave de um complô organizado com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), pré-candidato à Presidência, cujo objetivo é desestabilizar a equipe econômica e o governo, dificultando a reeleição de Bolsonaro. A proposta de socorro financeiro a estados e municípios aprovada pela Câmara seria a prova disso.

Segundo Guedes, a versão original defendida por Rodrigo Maia causaria um impacto de 285 bilhões de reais. Por isso foi tachada de pauta-bomba, já que sangraria os cofres da União, e de peça da conspiração eleitoral, pois encheria os caixas de governadores que podem enfrentar o presidente em 2022. Já Maia alega que o texto aprovado tem impacto de cerca de 90 bilhões de reais. Devido a essa diferença de números, o deputado declarou em entrevista a VEJA que o ministro não era sério. Guedes não respondeu publicamente, mas a pessoas próximas soou desafiador: “Se o Rodrigo Maia trabalhasse 10% do tempo em que fica dando entrevista, já estaria bom. Se eu quisesse, acabaria com ele em cinco minutos”. Ameaças à parte, Guedes está negociando com Davi Alcolumbre a votação de um novo pacote de socorro a estados e municípios, em substituição à proposta de Maia. Alcolumbre está empenhado no acordo com o ministro. Não é à toa. Sua meta é concorrer à reeleição à presidência do Senado com a bênção do governo. Em tempo: enquanto cada uma dessas autoridades defende seu projeto pessoal de poder, o Brasil já ultrapassou a marca de 50 000 infectados e 3 300 mortos em razão do novo coronavírus.

Publicado em VEJA de 29 de abril de 2020, edição nº 2684

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