Carlos Bolsonaro, o filho do meio do trio de herdeiros políticos do presidente, é, por assim dizer, vereador profissional. Eleito pela primeira vez para a Câmara do Rio de Janeiro em 2000, aos 17 anos, ele parte agora para a disputa de seu sexto mandato — um feito e tanto para alguém de quem se desconhece um projeto polêmico, um discurso empolgante ou um leque de benfeitorias em algum ponto da cidade. Nestes vinte anos, pelo menos oitenta assessores trabalharam para ele. Ou não. Um inquérito instaurado em agosto do ano passado pelo Ministério Público estadual apura a contratação de funcionários-fantasmas e a prática de “rachadinha” no gabinete do vereador, tal qual se investiga, há mais tempo e com mais fatos conhecidos, a passagem de seu irmão Flávio, hoje senador, pela Assembleia Legislativa fluminense. No caso de Carlos Bolsonaro, a suspeita de que tivesse na folha de pagamento gente que nunca bateu ponto no Palácio Pedro Ernesto foi acirrada pela apressada dispensa de nove servidores logo após a vitória do pai presidente. A identificação dos demitidos levou à constatação de que muitos nem moravam no Rio e seu baixo padrão de vida raramente combinava com os ganhos declarados.
Dados exclusivos obtidos por VEJA vêm reforçar as suposições de irregularidades: eles revelam que, além dos salários, polpudas gratificações eram concedidas pelo vereador justamente a seus misteriosos assessores, uma espécie de bônus que chega a até 80% da renda mensal de cada um. A distribuição desses extras já soma 3,035 milhões de reais no gabinete de Carlos. Oficialmente chamadas de “encargos DAS”, tais gratificações são concedidas àqueles que o parlamentar escolhe para executar alguma tarefa adicional, como sentar-se à cadeira de uma comissão da Câmara, por exemplo. Não é requerida nenhuma justificativa ou prova de capacidade técnica, nem tampouco há controle de presença nas reuniões — quem a atesta é o próprio “padrinho” do assessor. “Esses encargos são a maior caixa preta da Câmara. Não há transparência, ninguém sabe quem ou quanto recebe”, diz um vereador.
Nesse jogo de ganha-ganha, a campeã em gratificações propiciadas por Carlos Bolsonaro, segundo o levantamento de VEJA com base na Lei de Acesso à Informação, foi Juciara da Conceição Raimundo: 673 670 reais. Integrante do grupo de exonerados em dezembro de 2018, Juciara trabalhou mais de onze anos no gabinete do vereador, sete dos quais recebendo volumoso bônus — quando saiu, ele era de quase 7 000 reais por mês, quantia que adicionava ao salário de 10 000 reais. Com essa renda, a funcionária poderia levar vida confortável. No entanto, até pouco tempo atrás ela morava em uma casa, de tijolo aparente, que divide espaço com uma oficina mecânica, em uma favela em Cordovil, bairro de classe média baixa na Zona Norte do Rio. A reportagem de VEJA esteve no local duas vezes e também tentou falar com ela por telefone, sem sucesso. Juciara sumiu. A desconfiança: o dinheiro pode nunca ter sido entregue a ela.
Situações como a dela costumam acender a luz amarela no Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção (Gaecc), órgão do MP-RJ. Os promotores não comentam o inquérito em andamento, mas, se Carlos Bolsonaro vier a ser denunciado, pode responder pelos crimes de peculato, corrupção e, na esfera cível, improbidade administrativa. O simples ato de distribuir gratificações, é bom que se esclareça, não constitui irregularidade. O ilícito acontece se o funcionário recebe o extra sem realizar as atribuições que justificariam o adicional. Outra funcionária dispensada pelo vereador Bolsonaro, a aposentada Leila de Carvalho Lino, moradora de Santa Cruz, na Zona Oeste carioca, contou a VEJA no ano passado que raramente ia à Câmara e não sabia detalhar suas funções. O levantamento agora mostrou que ela foi agraciada com cerca de 160 000 reais em bônus, mais o salário. Procurada no início de outubro, mudou de versão: disse que fazia distribuição de panfletos. Residente de um sítio simples naquela região, a ex-funcionária Noélia de Macedo Duarte é mais uma da lista com um modo de vida que destoa dos 451 000 reais recebidos ao longo de dezoito anos, só em adicionais. Ela foi contratada em janeiro de 2001, por indicação do irmão, José Carlos de Macedo Duarte, militar que trabalhava no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro. VEJA esteve três vezes na casa de Noélia, mas ela não apareceu. A irmã transmitiu um breve recado: “Não sei de nada”.
Em teoria, o funcionário pode até desempenhar suas funções fora da Câmara, mas sempre atuando no município em que está lotado. Por isso, chama a atenção a existência do “núcleo de Resende”, formado por parentes e amigos de Ana Cristina Valle, a segunda mulher de Jair Bolsonaro, contratados no gabinete do vereador Carlos mesmo morando na cidade localizada a 170 quilômetros do Rio — ou ainda mais longe. A própria Ana Cristina, funcionária do ex-enteado durante sete anos, foi contemplada com 120 000 reais em forma de bônus. O advogado Guilherme de Siqueira Hudson, primo dela, recebeu 78 000 reais. Uma cunhada de Ana Cristina, Marta da Silva Valle, professora que vive em Juiz de Fora, no estado de Minas Gerais, ganhou 50 000 reais — tudo em extras. Na conta de Gilmar Marques, um ex-cunhado morador da cidade mineira de Rio Pomba, pingaram 88 000 reais. Até a babá de um filho do primeiro casamento de Ana Cristina, Cileide Barbosa, entrou na roda: foi merecedora de 54 000 reais em gratificações.
De acordo com o levantamento, um segundo grupo familiar agraciado, liderado pelo militar Edir Barbosa Goes (que está até hoje na folha do vereador Carlos), mora em Magé, a 60 quilômetros do Rio. Juntos, Goes, sua mulher, Neula, a irmã, Nadir, e o filho Rafael levaram 1,35 milhão de reais em extras no tempo em que trabalharam no generoso gabinete da Câmara de Vereadores do Rio. Em abril de 2019, VEJA procurou o clã Goes e foi atendida por Neula, que, sobre sua função ao lado de Carlos, preferiu não ser específica. Só falou que “fazia prestação de serviços gerais” e encerrou a conversa: “Se quiser saber mais, pergunte ao chefe de gabinete”. Há duas semanas, a reportagem voltou à casa de Magé e desta vez encontrou Edir. Ele identificou-se como Paulo, mas ainda assim resolveu sair em defesa própria. “Edir e Neula não cometeram nenhum crime”, limitou-se a dizer. Procurado por VEJA, Carlos Bolsonaro, o bom patrão, não quis se pronunciar.
Publicado em VEJA de 4 de novembro de 2020, edição nº 2711