No discurso que vem construindo para viabilizar a quarta tentativa de chegar à Presidência da República, o ex-governador do Ceará Ciro Gomes (PDT) costuma intercalar as suas propostas para o país e os ataques aos adversários entre comentários que ressaltam o seu passado sem processos relacionados a desvios de dinheiro público. Com estilo incisivo, tem por hábito exaltar a si mesmo como um candidato “ficha-limpa”, como faz na biografia de seu perfil no Twitter, onde ressalta que “nunca foi processado por roubalheira”. Por outro lado, usa adjetivos como “ladrões” para se referir com frequência aos seus principais adversários, Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Esse discurso de ênfase na ética como diferencial político em relação à concorrência pode ter sofrido um arranhão definitivo na última quarta, 15. Nesta data, Ciro se tornou um dos alvos de uma operação de busca e apreensão realizada pela Polícia Federal, que também envolveu os seus irmãos Cid (senador pelo PDT) e Lucio Gomes, dois ex-procuradores-gerais do Ceará, cinco empresários e a sede de três companhias. Os policiais buscavam provas para corroborar uma delação feita por dirigentes da Galvão Engenharia sobre pagamentos de propina nas obras do Estádio Governador Plácido Castelo, o Castelão, para a Copa de 2014, durante a gestão de Cid como governador — a reforma custou cerca de 500 milhões de reais.
O esquema teria extorquido 11 milhões de reais da empresa (veja o quadro). Os principais delatores são Dario e Mario de Queiroz Galvão, que disseram que os acordos eram feitos com Lucio, que seria o operador dos irmãos. Foi Lucio quem teria pedido um depósito inicial de 1,5 milhão de reais na conta do PSB, partido dos Gomes à época, como doação eleitoral, e acertou que os demais pagamentos seriam feitos aos advogados Fernando Antônio Costa de Oliveira e José Leite Jucá Filho, ex-procuradores-gerais, e a Hélio Parente de Vasconcelos, sócio da dupla. Em sua delação, Dario Galvão Filho coloca Ciro no centro decisório do esquema. Aos policiais, ele disse que tinha encontros para “validação institucional” do pagamento da propina com Ciro e Cid, e relatou que, no caso de Ciro, um desses encontros ocorreu no Aeroporto de Viracopos, em Campinas (SP). Segundo o juiz Danilo Dias Vasconcelos de Almeida, que autorizou a ação de busca e apreensão, ela foi amparada em provas materiais, não apenas em relatos de delatores. “O fato é que a autoridade policial logrou reunir elementos indiciários que conferem verossimilhança à colaboração premiada”, escreveu. De acordo com ele, foram reunidos elementos materiais confirmatórios, como anotações, e-mails, agendas e notas fiscais, além do cruzamento de doações e das informações prestadas na delação.
A reação imediata de Ciro diante das denúncias foi apelar novamente à biografia. “Até os meus mais agressivos adversários sabem que os meus defeitos não passam pela desonestidade nem por envolvimento com corrupção”, afirmou. Além de usar o velho argumento de que é honesto, Ciro fez o que mais sabe: partiu para o ataque. Disse que a PF estava agindo politicamente a mando de Bolsonaro e que o presidente havia transformado o Brasil em um “estado policial que se oculta sob falsa capa de legalidade”. E apontou motivação eleitoral da operação. “Não tenho dúvida de que esta ação tão tardia e despropositada tem o objetivo claro de tentar criar danos à minha pré-candidatura à Presidência”, declarou. Nas primeiras horas após a operação, ele mostrou que a sua estratégia vai ser desqualificar a investigação e ao mesmo tempo capitalizá-la eleitoralmente, vendendo a imagem de vítima de uma armação. Ciro disse que o caso se tratava de lawfare — quando a lei é manipulada para atingir um adversário político —, o mesmo discurso usado pela defesa de Lula na luta contra a Lava-Jato. Ainda na manhã de quinta-feira, aliás, o petista saiu em defesa de Ciro, em uma piscadela que pode significar disposição para uma reaproximação entre o PT e o PDT, que estavam distantes desde que Ciro assumiu o protagonismo no seu partido. Após Lula dizer que os investigados tiveram as casas invadidas “sem necessidade”, um séquito de lideranças de esquerda que gravitam em torno da candidatura de Lula saiu em defesa do pedetista, como a ex-presidente Dilma Rousseff, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, os governadores do Ceará, Camilo Santana (PT), e do Maranhão, Flávio Dino (PSB), e o ex-candidato a presidente pelo PSOL Guilherme Boulos. No PDT, deputados do partido foram às redes sociais para defender seu presidenciável. Nos bastidores, torcem para ele desistir da eleição e se juntar ao PT (não por uma questão ideológica, mas para sobrar mais dinheiro para suas campanhas).
A suspeita sobre Ciro não poderia ter vindo em pior hora para o presidenciável. Embora nenhuma acusação formal tenha sido feita ainda, a investigação criou um novo problema sério para uma campanha que já dava sinais crescentes de descompasso. O seu espaço no centro político ficou menor nos últimos dias com o lançamento das pré-candidaturas de Sergio Moro (Podemos), João Doria (PSDB), Simone Tebet (MDB) e Rodrigo Pacheco (PSD), além do casamento formal de Bolsonaro com os partidos do Centrão. Para completar o isolamento de Ciro e reduzir as suas poucas chances de viabilizar alianças, a movimentação de Lula tem esvaziado também as suas possibilidades à esquerda. Um dos últimos revezes foi a decisão de dezoito diretórios do PSB na semana passada de dar aval à criação de uma federação com o PT — o novo modelo eleitoral obriga a uma aliança nacional por no mínimo quatro anos. Quando começou a campanha, Ciro sonhava com uma aliança de centro-esquerda com o PSB, o PV e a Rede, mas os dois primeiros já estão próximos de Lula.
Se não bastasse, o candidato, que está em campanha ao menos desde 2020, enfrenta um viés de baixa nas pesquisas de intenção de voto. Depois de ter ficado em torno de 10% por um bom tempo e parecer ter se consolidado como o primeiro nome atrás da dupla Bolsonaro-Lula, ele agora gravita em torno de metade disso. No PDT, embora a candidatura seja vista como “irrevogável”, há a preocupação entre os candidatos a deputados de precisarem defender um nome estagnado, enquanto os seus adversários poderiam se atrelar à imagem de Lula, que ostentou 48% na pesquisa Ipec divulgada na terça-feira 14. A preocupação faz sentido porque dois candidatos a governador pelo PDT — Weverton Rocha (Maranhão) e Rodrigo Neves (Rio de Janeiro) — já anunciaram que abrirão seus palanques ao petista. Alguns parlamentares temem até que o partido saia menor da eleição (a bancada tem 25 deputados).
Outro ponto que incomoda alguns membros do PDT é a falta de rumo da campanha. A comunicação, coordenada pelo marqueteiro João Santana, estrategista por trás das vitórias do PT de 2006 a 2014, já não vinha agradando. Sua missão seria a de tirar a campanha do emparedamento imposto por Lula e Bolsonaro, mas o que ele fez foi subir o tom “esquentado” de Ciro diante da consolidação dos candidatos rivais. “Quando se olha as postagens do Ciro, você não sabe bem o que entender. Ele primeiro tentou ficar mais light, mas aí voltou a bater. A entrada do João Santana complicou mais o Ciro do que o ajudou. Ele perdeu muito da identidade”, diz o diretor de Análise de Políticas Públicas na Fundação Getulio Vargas (FGV DAPP), Marco Aurelio Ruediger. No que interessa, as intenções de voto, o trabalho de Santana ainda não deu resultado. Pelo contrário: desde que ele assumiu a campanha, em abril, ao custo de 250 000 reais por mês, caiu o porcentual daqueles que pretendem votar no pedetista (veja o quadro).
A questão agora é como Ciro vai reagir para tentar sair das cordas. Ele pode ter razão ao reclamar de que nunca foi chamado para prestar depoimento sobre essa história e que a espetaculosa operação de agora se refere a um caso ocorrido há quase dez anos. Mas é fato também que as obras relacionadas à Copa de 2014 e à Olimpíada de 2016, diante de tantos indícios de corrupção, merecem investigações aprofundadas. Além do Castelão, outras nove sedes do Mundial deixaram um legado de encrencas que envolvem, em diferentes níveis, investigados de diversas colorações partidárias. Único político ainda preso pela Lava-Jato, o ex-governador do Rio Sérgio Cabral (MDB), por exemplo, foi condenado em segunda instância a 45 anos e nove meses de prisão por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa no recebimento de propina de empreiteiras que tocaram as obras do Maracanã, entre outros contratos públicos. Os ex-presidentes da Câmara Eduardo Cunha (RJ) e Henrique Alves (RN), também do MDB, foram alvo da Operação Manus, em 2017, e respondem por suspeitas de desvios na construção da Arena das Dunas, em Natal, mesma obra que levou o ex-senador e ex-presidente do DEM Agripino Maia ao banco dos réus. No caso do Estádio Mané Garrincha, de Brasília, o mais caro da Copa (1,5 bilhão de reais), as suspeitas de corrupção tornaram réus os ex-governadores Agnelo Queiroz (PT) e José Roberto Arruda (PL).
Considerando-se esse histórico e computadas as queixas sobre exageros da recente operação da PF sobre Ciro, que lembraram os momentos mais midiáticos da Lava-Jato, não é possível descartar apenas com bravatas nas redes sociais as suspeitas sobre o caso Castelão. O carimbo do atestado de honestidade precisa vir junto com a conclusão dessa investigação. Enquanto se vê agora com a PF nos seus calcanhares, o pedetista tem pouco tempo daqui por diante (talvez até março) para provar ao partido que poderá deslanchar na campanha. Precisará de mais do que a autoexaltação, o estilo metralhadora e o discurso de perseguido para virar esse jogo difícil.
Publicado em VEJA de 22 de dezembro de 2021, edição nº 2769